Racismo contra parlamentares negras evidencia abolição inacabada e desafios da luta antirracista

Racismo contra parlamentares negras evidencia abolição inacabada e desafios da luta antirracista

Mulheres negras em posições de liderança denunciam ataques e ameaças recebidas ao ocuparem espaços de decisão e comentam a importância da educação para combater o racismo

Ataques racistas contra vereadora Miss Preta (PT) - Foto: divulgação

“Negra suja, macaca fedida, vagabunda e sem vergonha”. Essa é apenas uma das frases recebidas por uma mulher negra em uma série de ataques racistas motivados por sua cor da pele, por ser mulher e por ocupar um cargo político. As ofensas, que incluem até ameaça de morte, expõem os níveis extremos de violência enfrentados pela população negra no Brasil e evidenciam as razões pelas quais o movimento negro considera 13 de maio como dia da abolição inacabada.

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Embora costumeiramente a população brasileira associe o dia 13 de maio de 1888 como dia da abolição da escravidão no Brasil, devido à assinatura da Lei Áurea nessa data, o Movimento Negro Unificado (MNU) entende que esse ato representa, na verdade, uma falsa abolição, já que 137 anos depois, a população negra ainda sofre com as desigualdades geradas a partir da escravidão.

Apesar de representarem a maioria da população do país, pessoas negras são minoria nos espaços de poder e decisão e, quando chegam nestes lugares, são vítimas de campanhas de ódio e difamação, chegando ao ápice de ameaças de morte apenas por representar essa parcela da população.

Um dos casos mais recentes é o da vereadora de Pinhais, Edna Sousa, mais conhecida como Miss Preta (PT), que desde março deste ano tem sido vítima de uma campanha de ódio, onde os(as) algozes atacam principalmente sua raça e seu gênero, ignorando sua representação para a população negra, a qual a elegeu democraticamente.

Sendo a vereadora mulher eleita mais votada da história cidade, com 1608 votos, a parlamentar viu a sua vida virar de cabeça para baixo após receber ciberataques com ameaças de morte. 

Segundo a vereadora, os(as) ataques estão relacionados principalmente à sua atuação parlamentar em defesa dos direitos da população negra. Em uma das mensagens que recebeu, o criminoso foi além dos ataques racistas e fez também ameaças de morte.

“Negra suja, macaca fedida, vagabunda e sem vergonha. Trate de renunciar seu mandato de vereadora e abandone a política ou você vai ficar furada como Marielle. Nada no mundo vai me impedir de te matar. Ainda mais Macaca fedida como você, que não deveria ser vereadora, mas sim estar num zoológico comendo bananas (emojis de bananas). A milícia tem que colocar Edna no caixão (emojis de caixão), mas não faz porque são burros”, escreveu um dos criminosos.

“Os ataques que tenho recebido obviamente estão relacionados a minha atuação parlamentar e, olhando o cenário brasileiro, não são apenas direcionados a mim, mas uma manifestação da violência política que negros e, especialmente mulheres negras, sofrem quando começam a ocupar qualquer espaço que o “status quo” reivindica ser seu. São ataques que visam deslegitimar minha voz e atuação política na tentativa de me silenciar e intimidar”, explica.

A legisladora foi ouvida pela primeira vez na delegacia da cidade no dia 21 de março e fez um boletim de ocorrência por conta dos ataques. Ninguém foi preso até o momento.

Outra parlamentar que acumula uma série de ataques racistas recebidos pela internet é a professora e deputada federal Carol Dartora (PT). As ameaças tiveram início em 2020, após ter sido eleita a primeira vereadora negra da história de Curitiba. Dois anos depois, quando foi eleita para a Câmara federal, novamente a primeira mulher negra do Paraná escolhida para esse cargo, novos ataques com ofensas racistas e ameaças de morte chegaram nas redes sociais e na caixa de mensagens de Dartora.

Na semana passada, Carol Dartora divulgou uma atualização sobre as investigações, informando que a Polícia Legislativa da Câmara dos Deputados identificou e autuou um dos responsáveis pelos ataques racistas direcionados contra ela no ano passado.

“Agradeço e parabenizo os esforços dos profissionais da polícia da Câmara pelo trabalho realizado para que chegássemos até essa decisão. Continuo firme e atuante no combate ao racismo! Seguimos juntas e juntos”, escreveu em um rede social.

Pesquisa 

O episódio não é isolado e diversas lideranças negras se viram em uma espiral de ódio, onde apenas a existência em um espaço de decisão é motivo de ataques cibernéticos. 

De acordo com um levantamento realizado pelo Instituto Marielle Franco, com apoio da Terra de Direitos e a ONG Justiça Global, em 2020, 78% das candidatas negras relataram ter sofrido ataques virtuais durante o período eleitoral.

O levantamento entrevistou 142 mulheres candidatas de 93 municípios, onde os principais autores dos ataques são grupos não identificados (45%), candidatos ou grupos militantes de partidos políticos adversários (30%) e grupos misóginos, racistas e neonazistas (15%). A pesquisa identificou ainda que 78% das candidatas negras relataram ter sofrido ataques virtuais no período eleitoral.

A pesquisa reforça a necessidade de políticas públicas de promoção da igualdade racial na política, além de um avanço na investigação e punição dos(as) responsáveis.

“É necessário uma radical mudança estrutural no cenário para que outras mulheres negras consigam ocupar mais espaços de poder. Isto passa pelo fortalecimento de candidaturas de mulheres negras com investimento, suporte e estrutura de campanha, com formação e capacitação política, melhorias na legislação eleitoral que garantam maior representatividade e justiça histórica com a negritude”, explica a vereadora.

Já a secretária de Promoção de Igualdade Racial e Combate ao Racismo da APP-Sindicato, Celina Wotcoski, aponta que neste 13 de maio, é necessário questionar onde está a abolição, já que, quando uma pessoa negra chega a um espaço de poder, sua atuação é questionada, sob pena de ataques incessantes.

Celina Wotcoski, Secretária de Promoção de Igualdade Racial e Combate ao Racismo da APP-Sindicato – Foto: Bruna Durigan / APP-Sindicato

“Nós não queremos poder, queremos inserção e queremos ser respeitadas enquanto pessoas negras em todos os espaços de nossa sociedade. Treze de maio não tem nada a comemorar, mas devemos buscar cada vez mais nosso respeito”, completa Celina.

A APP reafirma que a virulência dos ataques é reflexo de uma sociedade que ainda não superou seu histórico racista e fecha os olhos para os problemas que a falta de políticas reparatórias trouxeram ao país. É preciso lutar para que a educação seja uma força aliada nessa luta, aproveitando a segurança que o espaço escolar oferece para desconstruir o racismo impregnado na sociedade brasileira.

Racismo é crime

Pela legislação brasileira, o racismo é definido como um crime contra a coletividade e a injúria quando é direcionada ao indivíduo. O racismo é crime inafiançável e imprescritível e a injúria racial também é tipificada como crime de racismo. A pena prevista é de dois a cinco anos de reclusão e multa.

O Disque 100 é um dos canais oficiais onde as vítimas podem fazer denúncias e obter orientações sobre racismo, injúria racial e outras violações de direitos humanos. Segundo o governo, o serviço está sendo mais divulgado e acionado pela população, resultando em um número maior de registros, na comparação com anos anteriores. 

Em 2021, o Disque 100 registrou 1,4 mil violações por racismo e injúria racial. Em 2022, saltou para 2,3 mil violações. Já em 2023, o número de registros dobrou e chegou a 4,6 mil violações.

Totalmente gratuito, anônimo e de ligação gratuita, o serviço é oferecido em diversas plataformas. Além de ligação telefônica pelo número 100, é possível acessar pelo WhatsApp (61) 99611-0100, pelo Telegram (digitar “direitoshumanosbrasil” na busca do aplicativo) e pela internet, na página da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, no site do MDHC.

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