Quando a escola nos expulsou de casa APP-Sindicato

Quando a escola nos expulsou de casa

*Vera Vilma Fernandes Leite

Foto: Pixabay

Termino o trabalho – todos os dias – enjoada. Depois de 9 horas em frente ao computador dando as famigeradas aulas remotas a ideia de fazer mais meeting no dia seguinte, assistir a lives, participar de intermináveis reuniões, baixar mais e mais aplicativos, acessar o WhatsApp, corrigir atividades do classroom, fazer as chamadas no RCO, corrigir atividades impressas – que no horário da minha folga busco na escola – deixar recado em mural, elaborar atividades impressas e adaptadas, ficar atenta ao tempo de 40 minutos de duração da aula sob pena de falta, pois não pode haver ruptura no tempo pré-determinado para as meets e a câmera deverá permanecer constantemente aberta, me dão a certeza de que o dia não terminou. Minha cabeça pesa. Tento me erguer da cadeira afundada ao lado dos pés da escrivaninha e ancorada a parede que ainda segura a televisão. Subo com dificuldade e, em pé, me apoio entre muitos papéis que representam a presença dos alunos na ausência das meets e classroom. É preciso validar o modelo imposto dessas aulas e para isso, o Secretário de Educação do Estado do Paraná, Renato Feder, grita à comunidade escolar – entre uma live e outra – se recusando ao diálogo: “Se virem! ”, fazendo coro ao “E daí? do Palácio do Planalto e provando que aprendeu a lição.

Sinto – embora descalça – que calço uma bota redonda com espinhos que espetam minha sola dos pés. Alongo-me, suave, e meu corpo exausto reage com mais dores que se transformam em tormento.

Além dos papéis, os livros se amontoam na mesa, junto com a desordem da casa, a poeira, as plantas na sacada que pedem por água, as contas esperando serem pagas, o barulho de vida ou morte (quem sabe) que entra –insistentemente – pela janela daquilo que, em tempos de corona vírus convencionou-se chamar de home office, levando o tempo de vida que está marcado pelo som de carros, caminhões, vozes, dispositivos abrindo o portão do prédio, buzinas, assovios tímidos de algum vizinho, lixo sendo recolhido, calçada sendo lavada e a serra de uma marmoraria perto, que corta sem parar, reduzindo os dias ao som de um cotidiano que coloca abaixo o meu espaço particular, minha intimidade, minha vida.

Já em pé, ainda sentindo os espinhos nos pés inchados, tento dar chutes no ar, ora com o direito, ora com o esquerdo para que possam pisar o mais confortável possível. Meu corpo dói. O pescoço e o ombro parecem terem perdido a força para manterem a cabeça ereta. Vou até o banheiro e percebo as toalhas amontoadas, a pia com manchas de pasta de dente e sabonete, os azulejos com nódoas se formando nos rejuntes. Pela primeira vez – ao longo de dias – olho fixamente ao espelho e não me reconheço. Vejo uma mulher cansada, marcada, dolorida física e emocionalmente. Sinto-me sem voz, sem representatividade, sem vontade de estar na minha casa e sem ter para onde me refugiar. Minha casa me sufoca e me expulsa.

Jogo uma água gelada no rosto – como metáfora de um despertar de pesadelo. Tento me recompor. Porém, diferente da poesia, a realidade se apresenta como ranhuras de grandes fendas na parede.

Caminho a passos lentos, e na sala vejo minha filha – que cursa o primeiro ano em uma Universidade Pública – ainda envolta as aulas em meio a cadernos, escritas, trabalhos que se adentram pela noite. Nós duas engolimos sobras, no almoço, esquentados no micro-ondas. Nós duas não tivemos condições (tamanha é a demanda de trabalho e estudo) de nos organizarmos para deixar a cozinha arrumada. Ao vê-la multitarefada, respiro fundo e, com dificuldade, tento buscar o ar que me vem insuficiente e resisto – diante da pia cheia – a começar a limpeza de um lugar que já não me pertence, apesar da estrutura e parede que me cerca, estar sem casa é o que há de mais concreto.

Enquanto, lentamente, lavo a louça, sinto a lentidão do pulsar do lado direito da minha cabeça que me faz tomar um analgésico. Os pensamentos pipocam, sobretudo, aqueles que dizem respeito a essa experiência inédita da nossa trajetória: a do trabalho invadir a casa por 24 horas e 7 dias por semana, nos deixando sem casa.

Que a pandemia expõe e agrava as desigualdades no Brasil, várias pesquisas já apontaram. A sociedade brasileira – como pontua o filósofo e ex-ministro da Educação Renato Janine – se esmerou para se construir injusta, de uma grande miséria, misógina, racista, desigual social e intelectualmente que, para o filósofo – é consequência de um planejamento escravocrata, excludente impondo aos menos favorecidos morarem em lugares que alagam com facilidade ou que secam extremamente, fazendo com que, aquilo que é um direito básico seja visto como privilégio, e em caso da covid-19, não dá condições aos que sofrem – devido ao modelo excludente – se protegerem do vírus que ameaça o mundo.

Portanto, compreendendo essa abissal desigualdade, ao longo dessa pandemia, tenho me perguntado muito sobre o sentido da palavra casa. Os meios de comunicação, vez ou outra, trazem notícias, nem sempre imparciais, sobre a luta por moradia, as ocupações de prédios, a luta pela terra, pela sobrevivência, por plantar e colher. No entanto, nunca a palavra casa entrou tão fortemente em mim por ocasião do incêndio – em 2018 – de um prédio ocupado em São Paulo por cerca de 150 famílias. Na ocasião – próximo ao dia das mães – lembro de ter escrito um texto fazendo analogia a expulsão dessas famílias pelo fogo – na sua maioria sendo sustentadas por mulheres – com um ninho de passarinho que se alojou em minha sacada. A solidão da pombinha me fez pensar na solidão da maternidade em um acampamento improvisado – por conta do incêndio – na rua.

Em vésperas de dia das mães o pedido por uma casa digna era latente. Ao acompanhar os noticiários e comentários a respeito, era comum ler agressões a essas famílias que naquele momento já estavam suficientemente humilhadas por não terem um lugar para se proteger e proteger seus filhos. O fogo expulsaram-nas, assim como – nas reintegrações de posse de terrenos ocupados – a violência quase sempre expulsa a mando de quem tem o poder de determinar que a casa ali construída não é a casa legalmente aceita.

Mas afinal, o que é uma casa? Para Gaston Bachelard, em sua Poética do Espaço, – a casa e seus espaços, além da proteção, ligam-se também a valores imaginados, fantasiados, figurativos e simbólicos. Para o filósofo e poeta francês o espaço percebido pela imaginação não pode ser o espaço indiferente entregue à mensuração e à reflexão apenas da arquitetura, mas, sobretudo, uma reflexão poética sobre a percepção do espaço vivido em todas as parcialidades da imaginação. Trata-se, também, da construção diária nos devaneios do nosso coração. E isso, independe se a casa é um palácio, uma mansão, um sobrado, um apartamento, uma casa de madeira, construída a partir de materiais reciclados, em palafitas, numa árvore, na floresta, numa etnia indígena, embaixo de viadutos com famílias que criam um cotidiano de trabalho, ou mesmo, casa com paredes imaginárias, como as casas das esquinas movimentadas das grandes cidades como tentativa de um limite entre o privado e o mundo ameaçador, sobretudo àqueles que pouco ou nada têm, além do próprio corpo.

Porém, nessa diversidade de arquitetura e espaços que cada casa conserva em si – novamente trazendo Bachelard – a ideia da casa estabelece uma apropriação do modo particular de estar presente no mundo. Isto é, o espaço onde cada um se reserva, ou reserva para a família ou para o grupo algo compreendido como lugar para onde se foge para escapar de um perigo, ou seja, um refúgio. Não é por acaso que as casas têm porta, mesmo que simbólicas, e essas portas tenham chave, pois o movimento de fechar a casa à chave nos protege dos perigos externos e garante a nossa privacidade inclusive, de escolher quem deve ou não entrar. No momento em que a casa deixa de representar essa proteção, é preciso ficar atento, pois, muito provavelmente, o perigo entrou em casa. E ele – o perigo – pode estar em quem divide o espaço da casa e oprime, abusa, assedia. Essa figura pode ser representada pelo pai, mãe, padrasto, madrasta, tio, irmão que machuca, negligencia, descuida, despreza o morador ou a moradora mais vulnerável – geralmente, mulheres e crianças. Desse modo a casa passa a ser um lugar de medo e sobressaltos.

No entanto, desde março do ano passado, um outro abusador entrou em nossas vidas – o home-office – prometendo “otimizar” (palavra que o neoliberalismo adora) nosso tempo – Para alguns, de início, pareceu a solução para a falta de tempo – esse tempo sem velhice que nos afoga e envelhece. Porém, com o tempo – sobretudo para nós – professoras e professores da rede pública do Estado do Paraná, percebeu-se a grande armadilha do discurso da defesa da vida, impondo-nos um modelo de educação que – em tempos de anormalidade – simplesmente tenta manter a normalidade da escola na nossa casa, arquitetando para isso, um discurso de forma dicotômica, isto é ou trabalhamos em casa e aceitamos esse modelo imposto, sem um momento de diálogo com quem realmente atua na educação ou voltamos à escola e ficamos a mercê do vírus, já que as condições físicas do espaços escolares não estão preparadas – conforme as medidas de proteção sanitária sugeridas pela OMS – para receber alunos, e trabalhadores da educação.

As forças contrárias – e muitas das vezes polarizadas – sempre se apresentaram como forma superficial de explicar, entender e aceitar o que há para além das aparências, tanto isso é verdade, que se tornou lugar comum o debate entre voltar as aulas presenciais ou continuar no modelo remoto, como se o problema se resumisse nisso. Ora, aqui é preciso compreender que a pandemia e o trabalho remoto são duas coisas distintas. O fato de estarmos trabalhando em casa para assegurar a nossa vida e a dos nossos alunos/alunas não pode significar, em absoluto, que devemos aceitar o improviso e a imposição com que a Secretaria de Educação tem tratado a questão, reduzindo o debate à adequação ou não do uso das tecnologias.

A metodologia apresentada que visa, tão somente, substituir um espaço pelo outro – sem levar em consideração as diferenças desses espaços – precariza ainda mais as condições de trabalho, quebram fronteiras entre vida profissional/pública com a vida privada, e desmorona as relações afetivas do espaço privado, pois, as crianças que agora têm os pais o tempo todo em casa, não os têm efetivamente. Se são crianças em idade escolar cujos pais são professores, ou profissionais que aderiram ao home office, a organização da casa passa a ser uma organização mercantilista e não um espaço particularizado de estar no mundo, como nos pontuou Bachelard. No caso específico da educação, para nós, professores do estado do Paraná, o mercantilismo se deve pela exigência imposta de consumir as plataformas digitais, as redes sociais, os equipamentos utilizados, tornando esses produtos mais importantes do que a razão da educação. Como se não bastasse, ainda passamos pela humilhação de ficarmos em completa dependência da compreensão da direção da escola, quando por alguma razão, as aulas forem interrompidas – por queda da internet – do tempo previamente determinado, ou – como acontece com frequência – uma operadora apresentar falhas, ou mesmo, se por alguma razão da organização da casa naquele momento o professor precisar desligar a câmera.

Qualquer que seja a razão, caracteriza falta em nosso trabalho, mesmo as razões da impossibilidade de ficarmos sem internet estarem fora de nosso controle, levamos falta, como se não comparecêssemos em nosso trabalho, isto é, não comparecemos como uma janela aberta dentro do aparelho de computador que atravessa a nossa casa e invade a casa do outro, que por sua vez, em uma proporção maior também invade nossa casa e com ele/a suas famílias também estão dentro de nossa casa. Conheço relatos de colegas que ao cair a internet da casa correu a casa da vizinha para continuar as aulas, já outra, corre com seu celular na calçada da rua para conseguir algum sinal de internet e reproduzir suas aulas para um número pífio de 5 alunos. Outro caso de uma professora que literalmente, teve que deixar a casa para mudar-se para a casa da mãe, com mais espaço no quintal, para que as crianças, pudessem deixá-la dar aulas e, foi obrigada a optar pelos trabalhos impressos que busca para seus filhos na escola de 15 em 15 dias, provando desse modo, que esse modelo é excludente, sem sentido, extremamente trabalhoso e atende em média 20% dos alunos. Embora o secretário da Educação recorra regularmente a imprensa para falar das “maravilhas” que só ele consegue enxergar das aulas, pois tem interesses pessoais e políticos para legitimar o modelo e esconde da população o que a maioria da comunidade escolar já compreendeu: o engodo dessas aulas remotas que, além de uma participação pífia, o aprendizado também é ínfimo, cujo objetivo é o controle do profissional da educação, sobretudo do professor que já a muito tem visto o conhecimento sendo esvaziado, o debate dando lugar ao autoritarismo, assistindo a pessoas que nada entendem de educação defendendo pautas que querem avançar uma agenda conservadora, segregando ainda mais um país que é tão desigual.

Nós professores, mesmo antes da pandemia já nos sentíamos cansados, calados e adoecidos, sobretudo por que não raro, passávamos por situações vexatórias em sala de aula com alunos/alunas com “poder de polícia” gravando aulas, postando nas redes sociais, desqualificando o discurso. Hoje não há mais barreiras, existe inclusive os chamados digital influencer com programas “ditos de humor” que de modo escancarado mostram a sala de aula, dentro da sala do professor, com o objetivo de cancelá-lo. Outra palavra da moda… E não nos enganemos, a tal aulas híbridas – metade presencial e metade remota – que devem começar em breve e que também não levam em conta as condições materiais e particularidades de cada comunidade escolar, negando o debate e fazendo crescer o monstro do autoritarismo, nada tem a oferecer com relação a aprendizagem e sim tornar válido uma metodologia que só interessa a quem já percebeu que educação é um grande negócio.

Já passa das 20h, o pulsar da minha cabeça continua e as dores só aumentaram. Reclamo para minha filha – que ainda está em aula e termina um trabalho que tem que entregar antes de meia noite – num conto de fadas às avessas – e mal consegue me ouvir. Tomo um banho e vou ao pronto-socorro. Minha cabeça pesa mais que meu corpo e mal consigo ficar em pé. Sou encaminhada ao ambulatório e fico por algumas horas no soro. Só assim consigo dormir um pouco. De volta a casa, só tenho medo que a noite passe muito depressa.

*Vera Vilma Fernandes Leite, professora da Rede Pública do Paraná.

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