A Câmara dos Deputados aprovou, na quarta-feira 21, projeto de lei que proíbe a suspensão de aulas presenciais durante pandemias e calamidades públicas, exceto se houver critérios técnicos e científicos justificados pelo Poder Executivo quanto às condições sanitárias do estado ou município.
Sob o objetivo declarado de ‘tornar essenciais’ a educação básica e o ensino superior, o PL 5595/2020, que ainda será encaminhado ao Senado, tem sofrido forte oposição de educadores, que veem ameaças ao setor para além do contexto imediato da pandemia.
Para Salomão Ximenes, professor de Direito e Políticas Públicas da UFABC, a intenção mais imediata do projeto é subverter as regras sanitárias definidas estados e municípios que ainda resistem “ao constante assédio do governo federal e de seus aliados” mesmo na situação de colapso do SUS e de recorde de mortes e sequelados.
“Quem poderia ser contra a dizer que a educação é essencial? Percebe? É uma armadilha, um sofisma. Há uma vulgarização do conceito de serviço essencial e a legalização do senso comum sobre educação”, questiona o educador que ainda vê a médio e longo prazos impactos, por exemplo, sobre o direito de greve da categoria.
Confira a entrevista:
CartaCapital: O debate acerca de tornar essenciais as aulas presenciais, tem mobilizado forte oposição. O que está em jogo, no momento?
Salomão Ximenes: O objetivo imediato do projeto é, primeiro, subverter as regras sanitárias definidas em muitos estados e municípios que ainda resistem ao constante assédio do governo federal e de seus aliados, mesmo na situação de colapso do SUS e de recorde de mortos e sequelados. A verdade é que há setores da sociedade que já incluíram no balanço de 2021 centenas de milhares de mortes evitáveis, inclusive de professores, estudantes e trabalhadores da educação. Não importa, faturam isso como um mal menor, querem escolas abertas mesmo com o contágio descontrolado e a incerteza das novas variantes. Eu nem chamo isso de negacionismo. Também na educação, o negacionismo é consequência de uma decisão política pró-genocídio.
CC: Muitos defensores dessa abertura recorrem a números e pesquisa.
SX: É claro que há negação envolvida, há manipulação de dados e desinformação sobre o contágio nas escolas. Vivemos o ápice da tática política de mentir com dados, como no caso do Boletim Epidemiológico da Secretaria de São Paulo – SP, como demonstramos em estudo com diversos colegas da REPU (Rede Escola Pública e Universidade). Mas o que quero pontuar é que, antes do negacionismo, há uma postura absolutista. Quem decidiu reabrir escola no dia em que faltava ‘kit intubação’ nos hospitais não está aberto ao contraditório, até porque isso teria como resultado a responsabilização por perdas causadas por decisões no mínimo imprudentes.
Então, o PL aprovado na Câmara quer oficializar nacionalmente essa postura e ao mesmo tempo endossá-la politicamente, apoiando governos que já adotaram, antes de qualquer lei ou decreto federal, a estratégia de classificar artificialmente, ilegalmente, a educação escolar e outras atividades, caso dos cultos religiosos etc., como atividades essenciais para autorizar o seu funcionamento mesmo no pico da pandemia. É uma tática cínica de fazer parecer que se está respeitando planos e fases de contenção e de reabertura enquanto se flexibiliza absurdamente as atividades.
CC: O governador João Doria já tinha assinado um decreto estadual considerando a educação como serviço essencial. Isso deu margem para que o debate chegasse ao Congresso?
SX: O PL aprovado na Câmara tem autores intelectuais velados em todo o país, no Planalto e nos Bandeirantes, é um movimento casado. O projeto aprovado na Câmara também pode afetar aspectos no médio e longo prazos, porque ele não pretende vigorar só durante a pandemia, mas deixa um entulho no tratamento do direito de greve e no dever de assegurar educação básica obrigatória. O projeto pode ser ainda mais negativo para o direito à educação se aprovado como está, pois o texto diz sobre tornar a educação essencial, o que é objetivamente impossível.
“Parlamentares que hoje querem impor a reabertura,
ontem votaram para desviar os recursos do Fundeb e
amanhã provavelmente vão votar a favor do homeschooling”.
CC: O que está colocado então não é necessariamente a defesa da educação enquanto direito fundamental?
SX: O que o projeto aponta é algo mais perigoso, que pode justamente deixar sequelas na educação como direito fundamental. O projeto se aproveita de uma visão de senso comum sobre a importância da educação escolar para dizer que, portanto, ela é essencial. A lógica se inverte como vimos na votação de terça e quarta, dias 20 e 21 de abril): quem poderia ser contra a dizer que a educação é essencial? Percebe? É uma armadilha, um sofisma. Há uma vulgarização do conceito de serviço essencial e a legalização do senso comum sobre educação.
Primeiro, esse é um ponto importante porque também vejo essa confusão entre os críticos da proposta. No direito público não há oposição entre tratar a educação como um direito e tratá-la como um serviço. Na Constituição e nas leis, educação é direito fundamental e é serviço público, são conceitos diferentes e complementares. O que o projeto faz é vulgarizar essas noções com o propósito de classificar de forma imprópria a educação como serviço e atividade essencial. Aí começam os maiores problemas e riscos porque significa forçar a barra sobre um conceito pacificado desde desde a Constituição e a Lei 7783, de 1989, tão pacificado que até o decreto do Bolsonaro de 2020 o respeitou. Que ideia é essa? A legislação pública define o rol de atividades essenciais tendo como critério a importância do direito em discussão. A definição de essencial é uma consequência direta do caráter inadiável da atividade. Coisas que não são direitos de primeira ordem são atividades essenciais, por exemplo navegação aérea e portuária, compensação bancária, manutenção de cobaias em laboratório são essenciais nesse sentido e não podem ser interrompidas, portanto o conceito de serviço essencial nada diz a priori sobre a maior ou menor importância social ou jurídica comparada à educação.
CC: O que você quer dizer com ser ‘objetivamente impossível’ tornar a educação serviço ou atividade essencial? Se esse projeto for aprovado não vai fazer exatamente isso?
SX: Esse é o cerne da contradição que tem permitido aos gestores lenientes e, agora aos defensores do PL federal, impor a abertura de escolas apesar do agravamento do contágio. O que eu digo é que mesmo que o PL seja aprovado, que alterem a Constituição, a educação não pode se tornar uma atividade inadiável e urgente, que não pode ser interrompida em nenhuma circunstância. Portanto, seria uma ficção jurídica errônea e com propósitos escusos, primeiro, obrigar a reabertura das escolas agora, segundo, tentar restringir ou dificultar o direito de greve na educação.
Tanto é verdade que o PL, no artigo primeiro, diz reconhecer a educação como serviço e atividade essenciais inclusive em situações de pandemia, emergência e calamidade pública. Já no art.2° diz que escolas e Universidades não podem interromper atividades presenciais e, a partir dessa declaração, passa a dizer o contrário, que tais atividades podem ser suspensas por critérios sanitários, técnicos e científicos.
Do artigo 3º em diante o texto muda a chave e passa a regular plano de reabertura de escolas. Veja, se estamos falando de um serviço ou atividade essencial não cabe neste regime jurídico regular exceções de interrupção ou plano de retomada. Serviço essencial não pode parar e ponto. Portanto, educação escolar não pode ser incluída nesse rol. O PL tem problemas conceituais gravíssimos e por isso entra em parafuso, tecnicamente não para em pé. Ainda assim, foi aprovado.
Seria cômico se não fosse parte importante de um perigoso plano de flexibilização geral das mesmas regras sanitárias. Nessa lógica, é a saúde que tem que justificar suas recomendações e não o contrário, a política justificar porque não segue regras sanitárias. O texto do projeto, nas entrelinhas, dissemina a ideia de que escolas não estão abertas por algum capricho de gestores e sindicatos, não porque isso fosse necessário como medida de controle epidemiológico. O ponto é que priorizar escolas não significa necessariamente reabrir agora no pico da pandemia e colocar as comunidades em risco extremo.
CC: Quais seriam os impactos aos profissionais da educação caso as propostas sejam aprovadas pela Câmara? Governadores e prefeitos seriam obrigados a reabrir as escolas imediatamente?
SX: De imediato, o impacto é a maior pressão política por reabertura ou continuidade de funcionamento das escolas mesmo com o descontrole da pandemia, o colapso da saúde pública. Mas veja, como educação escolar não pode ser reduzida ao regime de serviço essencial, como o próprio projeto reconhece em sua contraditória redação, os estados e os municípios e, no caso das universidades, as administrações autônomas e reitorias, continuarão podendo regular o tempo e a velocidade de reabertura. O que o PL passa a exigir é um ato administrativo específico que justifique tal decisão, o que na prática a legislação já exigia. Então, no sentido estritamente jurídico de impor a reabertura o PL é meio inócuo, mas como disse isso não pode ser compreendido descolado da política, é parte de uma cruzada contra as medidas sanitárias.
CC: E em relação ao direito de greve?
SX: A Constituição, ao assegurar o direito de greve, diz que a legislação deve definir os serviços e atividades essenciais que são necessários ao atendimento de necessidades inadiáveis. A chamada Lei de Greve estabelece um rol definido desses serviços e um regramento mais rígido do direito de greve, como aviso com maior antecedência sobre as paralisações e necessidade de assegurar a continuidade básica das atividades. Ao longo dos anos, algumas atividades foram inseridas nessa lista, sempre pela aprovação de leis. Então, o que o projeto quer é levar a educação básica e superior para o regime especial de direito de greve, estabelecendo dificuldades adicionais para a mobilização dos trabalhadores da educação tanto agora, na imposição da abertura insegura de escolas, como no futuro. Isso pode significar maiores limitações e criminalização das greves justamente na hora em que for se implementar a Emenda Constitucional n. 109, aprovada recentemente e que quer congelar salários dos servidores por muitos anos.
CC: Há um debate que considera a falta de socialização das crianças, e a exposição delas a maiores fragilidades, como casos de abuso e insegurança alimentar, como determinantes para a reabertura das escolas. Como dialogar com essas demandas, nesse momento?
SX: Esse é um aspecto absolutamente trágico do momento em que vivemos. Não dá para entender a enormidade da tragédia educacional descolada da tragédia humanitária que é o genocídio de nosso povo. Se as escolas estão fechadas a tanto tempo no País, isso infelizmente é coerente com estarmos a tanto tempo convivendo com patamares inaceitáveis de contágio e mortes. Manter as escolas fechadas e o ensino remoto, onde foi possível, é uma medida de valorização das escolas e de proteção de suas comunidades, não o contrário.
Fala-se agora de forma ocasional que as escolas fazem falta como espaço de proteção das crianças, e é verdade, mas o que não se fala é que antes, se as escolas cumpriam esse papel, era mais por abnegação dos educadores do que por políticas de proteção integral realmente implantadas.
Veja quem defende hoje abertura a qualquer custo e veja quem defende abertura quando for seguro. Quem historicamente atuou pela escola pública e pela universidade se encontra na difícil situação de dizer que não é hora. O que quero dizer é que o problema é real, dramático e coerente com a tragédia geral. Agora, precisamos ver se quem mobiliza esse discurso de reabertura agora tem preocupação real em apoiar a escola pública, porque o que vi na Câmara foi oportunismos de parlamentares que hoje querem impor a reabertura, mas ontem votaram para desviar os recursos do Fundeb e amanhã provavelmente vão votar a favor do homeschooling.
*ANA LUIZA BASILIO
Repórter do site CartaEducação
Fonte: Carta Capital (https://bit.ly/3t1H05J)