Mentalidade “coach” invade a educação na esteira da BNCC e do Novo Ensino Médio

Mentalidade “coach” invade a educação na esteira da BNCC e do Novo Ensino Médio

Se não for detido, o coaching vai contaminar toda a escola pública, alerta o professor e historiador Adriano Viaro, que se especializou no tema

>> Receba notícias da APP do seu Whatsapp ou Telegram

O “mindset” coach chegou com tudo no currículo da rede básica de educação.

No Paraná, o governo Ratinho Jr retirou o material da disciplina Educação Financeira denunciado pela APP, mas a mentalidade por trás da apresentação, que viralizou, continua ameaçando a educação pública paranaense, tentando impor soluções individuais para problemas que só podem ser resolvidos coletivamente.

Como apurou o Plural, o material de Educação Financeira adotado pelo governo do Paraná copia ideias do livro Os Segredos da Mente Milionária, de T. Harv Eker, publicado há 18 anos, em 2006. O autor acredita que as pessoas tem “mentalidade” rica ou pobre. Para enriquecer, bastaria parar de pensar como pobre – uma triste tentativa de impor a lógica coach à escola pública.

Os slides que viralizaram também faziam parte de uma apresentação que continha o vídeo de um profissional que se autointitula “coach sistêmico”.

Se não for detido, o coaching vai contaminar toda a escola pública, alerta o professor e historiador Adriano Viaro, que se especializa no tema desde quando essa ideologia coach começou a sair do mundo corporativo para entrar nas instituições privadas de ensino. “Ali percebi que o coach iria começar a adentrar a esfera pública também”, conta.

Viaro criou então o conceito do Apocalipse Coaching. “É um conceito guarda-chuva, acima de uma diversidade de sub conceitos, que quando se apresentam materializam o Apocalipse Coaching, que vai ser quando isso explodir, como um vulcão em erupção, e não haverá mais nada que possa ser feito”, diz.

Individualismo

O coach surgiu no âmbito esportivo e chegou às empresas sempre vendendo individualismo como solução para tudo. O material “educativo” disponibilizado pela Seed ensina que a mente rica não culpa ninguém por suas dificuldades, enquanto a mentalidade pobre “culpa os outros ou o governo”.

“O coach combate a coletividade, por isso é neoliberal por excelência, em prol do individualismo, é um “eu posso”, “eu consigo”; eu sou o protagonista da minha existência e se eu não conseguir a culpa é minha, é porque eu não me esforcei direito”, explica Viaro, que publicou nesta terça-feira (14) um episódio do seu podcast dedicado ao tema.

Depois de controlar a distribuição de material didático, as grandes empresas privadas vão tratar de expandir o domínio para a formação de professores da rede pública, como já fizeram nas escolas privadas, alerta Viaro.

“Eles fecham contratos de ecossistema, com a venda de material didático, de material digital, de suporte técnico e de palestras de formação para o corpo docente. Os mesmos palestrantes das escolas privadas irão então para as escolas públicas dar a formação para os professores. Quem são esses palestrantes? São coachs.”

“As gigantes são o Grupo Santillana, o Grupo Somos, o Grupo FTD e o Grupo Positivo. Eles trazem a mesma base do coachismo, do empreendedorismo neoliberal e colocam na rede pública”, afirma Viaro.

NEM

O Novo Ensino Médio está impregnado dessa ideologia de empreendedorismo neoliberal, que alimenta o coach. Só sua revogação pode resolver o problema, avalia Viaro. “Sem revogar o NEM não tem solução. Se pegarmos, por exemplo, a disciplina Projeto de Vida, ou ela é trabalhada pela teoria neoliberal do empreendedorismo, ou é trabalhada pelos livros de inteligência emocional, que são escritos por coachs”, afirma.

Uma professora comentou no Instagram da APP que o que ela chama de “coach barato” está em todo o curriculum do NEM. Ela afirma que na disciplina de Filosofia, na trilha Liderança e Ética, não há menção aos grandes pensadores. “A disciplina de ética e liderança já é uma aproximação com o mundo corporativo. O que deve estar nesse material que a professora cita é código de ética, que é diferente de ética. Código de ética é código de conduta, é criar robozinhos, pode fazer isso, não pode fazer aquilo”, explica Viaro.

Paraná

Como previsto pelo historiador, de fato o fenômeno coach chegou à escola pública do Paraná, se manifestando muito claramente no material de apoio às aulas de educação financeira do Novo Ensino Médio.

“Como é aprovado um material como aquele, o da educação financeira, denunciado rapidamente pela APP? Passa porque o material é legitimado no conjunto e não página a página. Ele é legitimado porque faz parte de um ecossistema que tem a legitimidade do discurso. Então, se vem do gigante do ensino, não vamos discutir, toca pra frente e deixa estourar, quando estourar a gente retira”, afirma o historiador.

O material preconceituoso disponibilizado pelo governo do Paraná só foi retirado após a denúncia da APP. “Isso quer dizer que deve haver um monte de outros absurdos no material do Paraná, mas eles vão retirar só essa página, porque foi denunciada”, observa Viaro.

O coach já mostrou capacidade de cruzar áreas do conhecimento para se impor e manipular mentes. Depois dos mundos esportivo, corporativo, da saúde e até religioso, ele agora chega à educação e ameaça tomar o lugar dos(as) educadores(as). 

“O coach não incomodou quando abriu mão de sua ética e invadiu o espaço da saúde mental, tomando lugar do psicólogo, do psiquiatra, do psicanalista. Ele só começou a incomodar quando decidiu tomar o lugar do pastor. Surgiu o coach messiânico, que começou a batizar pessoas. Aí os pastores se revoltaram. Agora os coachs querem tomar o lugar dos professores e sobretudo dos pedagogos e psicopedagogos”, afirma.

Uberização

Viaro estuda também a “uberização” da sociedade, que vai respingar na educação. “Isso está saindo da área do trabalho e passando a ser uberização do modo de vida, do modo de existência das pessoas. A BNCC e o Novo Ensino Médio aceleram o processo de uberização do ensino”, observa.

“A BNCC aumenta a possibilidade de aulas à distância, o que dá para trabalhar com aplicativos como o e_professor, que um é aplicativo de uberização do ensino em que a escola contrata o professor para uma carga horária de cinco aulas, dez aulas, um pacote, como se estivesse chamando o I-food. Isso traz a degradação das relações de trabalho do professor com as escolas, pois esse trabalho pode ser pago com nota fiscal fornecida pelo professor, que vai ser incentivado a abrir uma MEI para ser contratado como PJ”, afirma Viaro.

Outro problema da BNCC é que reduz o peso das Ciências Humanas, que favorecem o pensamento crítico dos estudantes. “Ao sufocar as disciplinas de Ciências Humanas, tu vai de certa forma acabar com o problema que é a crítica, com esse aluno que discute. Então você faz com que a escola pública forme apenas caixas e atendentes do McDonald´s”, diz o professor.

A armadilha está montada e será necessário muita perspicácia e ações precisas para escapar dela, aponta Viaro. “O buraco está armado, está muito bem constituído e traz para a gente a lembrança da frase de Darci Ribeiro: a crise da educação no Brasil não é um problema, mas sim um projeto.”

Ainda é possível evitar o Apocalipse Coach? “Não há saída de curto e médio prazo, porque o estrago está aí. Se o coach oferece soluções prontas, breves e rápidas, nós, combatendo o Coach, não podemos fazer a mesma coisa. Nós estamos diante de um problema para ser resolvido a longo prazo, só que se não começarmos de uma vez o prazo vai ser mais longo”, responde Viaro.

 

Isso vai fechar em 5 segundos

MENU