Financeirização da educação e EAD em tempos de pandemia | Gabriel Magno APP-Sindicato

Financeirização da educação e EAD em tempos de pandemia | Gabriel Magno


Sala de aula - Foto: AEN

A pandemia do Coronavírus escancara a incapacidade do capitalismo de resolver as crises social, econômica, política e sanitária, e com isso a necessidade de repensar o papel do Estado, de fortalecer o serviço público como instrumento fundamental da proteção social e por fim ao neoliberalismo.

No Brasil, a agenda ultraneoliberal iniciada por Temer e aprofundada por Bolsonaro/Guedes mostra sua incompatibilidade com a democracia, com os direitos sociais, com a saúde e com a educação pública.

Enquanto o mundo pensa formas de combater a pandemia, os setores empresariais da educação se movimentam e pressionam os Estados Nacionais para aprovar sua agenda de financeirização e mercantilização da educação. No Brasil esse processo se dá em quatro dimensões:

  1. Elevada redução dos investimentos públicos. Com a Emenda Constitucional 95 em 2016, a educação foi a pasta que mais perdeu investimento, o que impede a contratação de novos profissionais, construção de novas escolas e o investimento de recursos na área da educação. A próxima agenda do Governo Bolsonaro é acabar definitivamente com a vinculação constitucional de recursos para a educação (e saúde), nas três esferas administrativas (federal, estadual, distrital e municipal). O Plano Nacional de Educação, principalmente a meta 20 (10% do PIB para Educação) fica completamente anulado nesse cenário.
  2. A precarização do trabalho. Temer iniciou sua jornada golpista atacando direitos trabalhistas. E desde a eleição de Bolsonaro o que vemos é a escalada do crescimento da precarização do trabalho e da informalidade com as reformas trabalhistas e da previdência. Aumento dos trabalhos por hora, intermitentes, por aplicativos, contratação de pessoas jurídicas, todos os modelos para tirar os direitos adquiridos dos/as trabalhadores/as. A reforma da previdência promoveu mais um ataque à classe trabalhadora aumentando o tempo para se aposentar e diminuindo os valores das aposentadorias. A possibilidade do fim do FUNDEB e da vinculação de impostos para a educação comprometerá a política de valorização profissional, sobretudo de manutenção do piso do magistério e sua ampliação para os demais trabalhadores escolares.
  3. A homogeneização do currículo. A reforma do Ensino Médio e a BNCC aprovadas por Temer reduzem o currículo das escolas públicas brasileiras à formação para o mercado de trabalho e retiram das escolas o seu papel de formação cidadã. Bolsonaro segue a mesma linha ao impor a Lei da Mordaça e a Militarização das Escolas rompendo inúmeros conceitos e práticas pedagógicas garantidoras dos princípios constitucionais a) da gestão democrática, da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; b) do pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas; c) da gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais.
    A agenda de Bolsonaro/Weintraub/Damares avança com pautas obscurantistas sobre o currículo escolar e universitário, impedindo determinados conteúdos políticos, de gênero, de sexualidade, de raça. Esse ataque compromete o caráter democrático e emancipador da educação e contraria os princípios da Constituição Federal: “Art. 205A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
  4. Privatização das Escolas e Universidades e ataque à Gestão DemocráticaA tentativa de repassar para as Organizações Sociais a gestão das universidades, institutos federais e escolas da educação básica é um ataque à Gestão Democrática das instituições públicas no Brasil. Na educação básica, há projetos em curso de pagamento de vouchers para as famílias retirando recurso do Orçamento e precarizando ainda mais o setor público.

EAD como instrumento da mercantilização da educação básica

É nesse contexto que se movimentam os grandes grupos privados de educação. A Fundação Lehmann articulada com a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação – Undime, o Conselho Nacional de Secretários de Educação – Consea e o Ministério da Educação – MEC – que de maneira muito semelhante com a articulação para a aprovação da BNCC – tentam massificar a EAD na rede pública de Educação Básica. Os grandes empresários da educação veem na pandemia a oportunidade de lucrar ainda mais.

A proposta apresentada pela Fundação Lemann consiste em viabilizar educação a distância a partir do uso de celulares e em parceria com as operadoras de banda larga e serviços móveis. Lemann também incentiva o uso da plataforma Khan Academy, que adivinhe só, é financiada pela sua Fundação. A articulação é feita também com outras organizações como Instituto Natura, Fundação Itaú Social, Fundação Roberto Marinho e Instituto Unibanco. Essa agenda pode significar a entrada das grandes empresas num mercado que corresponde a mais de 80% de matrículas da educação básica que hoje estão rede pública de ensino (mais de 45 milhões de estudantes e cerca de 5 milhões de trabalhadores/as).

A proposta tem levantado o debate em todo o país, principalmente após manifestação do Conselho Nacional de Educação e de vários Conselhos Estaduais autorizando o uso de EAD na educação básica no período da pandemia. A defesa dos grandes grupos empresariais (na mesma linha de Bolsonaro de salvar a economia) é de que a paralisação das atividades pedagógicas traz grandes prejuízos à população e que é preciso salvar o ano letivo.

Do outro lado, entidades de trabalhadores/as em educação e estudantis não titubeiam em dizer: EAD na educação básica não é solução. Não podemos aceitar que a necessária suspensão do ano letivo para salvar vidas seja motivo para a privatização da educação básica através da educação a distância. EAD na educação básica é um ataque ao direito fundamental e inalienável da educação.

EAD não atende a realidade brasileira.

Temos no Brasil, e em boa parte do mundo, uma profunda desigualdade social e de acesso à internet e à informação. Um em cada três estudantes (33,5%) que tentaram vaga no curso superior, nos últimos cinco anos, por meio do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), não tem acesso à internet e a dispositivos, como computador ou celular. Dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anisio Teixeira (Inep), vinculado ao Ministério da Educação (MEC), mostram que 65,9% dos egressos do ensino médio que fizeram o ENEM nos últimos 5 anos declararam acessar internet e celular; 61,9% tinham computador e celular; e 54,81% tinham os dois dispositivos e acessavam a rede mundial de computadores.

Em nove estados, mais da metade dos estudantes não têm estrutura básica para cursar ensino superior a distância. O Amapá é o estado com menor proporção de estudantes com estrutura mínima para cursar o ensino superior a distância, com apenas 36,5%. Além dele, nos estados do Pará, Maranhão, Acre, Amazonas, Piauí, Roraima, Ceará e Tocantins, menos da metade dos estudantes responderam que tem internet em casa e computador ou celular. O estado com maior proporção é Santa Catarina, com 82,9%. Esses números ficam ainda menores quando falamos de estudantes matriculados/as na educação infantil e fundamental.

Essa desigualdade de acesso desrespeita o que está previsto na LDF como princípios do ensino no Brasil (LDB 9394/96 Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: 1.igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; ). Desrespeitar este princípio é aumentar o fosso da desigualdade já existente no atual sistema educativo do país, aumentando por exemplo o já alto índice de evasão nas escolas públicas brasileiras. Pesquisas recentes mostram que cerca de 25% dos jovens entre 15 e 17 anos (Ensino Médio) abandonam os estudos todo ano. Até nas universidades e faculdades onde existe melhor planejamento e estrutura a evasão em cursos EAD é superior à 50%. Adotar o modelo de EAD agora na educação básica dificultará ainda mais o retorno às aulas quando passar a pandemia.

A escola e os/as trabalhadores/as em educação são insubstituíveis.

tentativa de aplicar de qualquer maneira uma forma de educação a distância, a falta de estrutura para sua implementação e a necessidade das famílias, destacadamente as mulheres, ficarem com as crianças e jovens dentro de casa nos coloca frente essa importante constatação. Não é possível educar sem a presença de um/a profissional capacitado e um ambiente preparado para a atividade pedagógica. Como dizia Paulo Freire: “Ainda que desejem bons professores para seus filhos, poucos pais desejam que seus filhos sejam professores. Isso nos mostra o reconhecimento que o trabalho de educar é duro, difícil e necessário.”
Esse período de isolamento tem servido para reafirmarmos a necessidade de valorizar o trabalho dos/as professores/as e funcionários/as de escola.
Além da dificuldade de acesso à plataformas virtuais, os/as estudantes também vão enfrentar  grandes dificuldades pedagógicas e significativa perda de qualidade no processo de aprendizagem. Na educação básica, seja no ensino regular, seja na Educação de Jovens e Adultos, é fundamental que haja o acompanhamento presencial a) dos/as educadores/as capazes de coordenar a ação educativa, b) dos/as estudantes como sujeitos participantes, e c) da escola como espaço de diálogo.
Até mesmo as Universidades, que possuem certa expertise em educação a distância, tem rejeitado essa ferramenta nesse período de isolamento por conta da necessidade de um alto grau de comprometimento e autonomia dos/as estudantes no processo de aprendizagem.

Falta de formação dos docentes para trabalhar com EAD.

Não se faz Educação a Distância apenas transportando o conteúdo das aulas presenciais para o ambiente virtual. Pelo contrário, é necessário em muitos casos uma dedicação de tempo maior para a preparação dos conteúdos e desenvolvimento de metodologias. A esmagadora maioria dos/as trabalhadores/as em educação no país não tem formação em educação a distância e nem no uso de tecnologias, haja vista que nem nas escolas é possível contar com recursos tecnológicos. De acordo com dados do Observatório do Plano Nacional de Educação – PNE, em 2017, apenas 4,2% das instituições de ensino básico públicas do País tinham infraestrutura adequada, com todos os equipamentos que a lei exige como acesso à energia elétrica, abastecimento de água tratada, esgotamento sanitário da rede pública, quadra esportiva, laboratório de ciências, biblioteca ou sala de leitura e acesso à internet de banda larga. O censo escolar de 2017 diz que “a presença de recursos tecnológicos como laboratórios de informática e acesso à internet ainda não é realidade para muitas escolas brasileiras. Apenas 46,8% das escolas de ensino fundamental dispõem de laboratório de informática; 65,6% das escolas têm acesso à internet; em 53,5% das escolas a internet é por banda larga”.

A limitação estrutural e a profunda falta de investimento na educação básica são barreiras que precisam ser vencidas para avançarmos no sonho de uma educação pública de qualidade para todos/as.

Utilização de materiais e métodos estandardizados.

A falta de formação dos/as trabalhadores/as na educação básica para o ensino a distância nos colocam a frente de outra questão: “Quem irá preparar o conteúdo e o método que serão utilizados?”

Uma primeira resposta seria os próprios professores/as e funcionários/as das escolas. Nos locais onde essa experiência seja com EAD e/ou tele-aulas já iniciou é notório alguns problemas: a) o distanciamento da realidade dos programas com a dinâmica dos/as estudantes; b) a falta de diálogo das secretarias de educação com as famílias sobre como acompanhar o processo; c) a exposição excessiva dos/as docentes que se dispuseram a colaborar; d) a desorientação por parte das secretarias de educação em como resolver os problemas previamente anunciados (como se dará a avaliação, qual é o grau de autonomia das escolas, como resolver a questão do acesso, a falta de estrutura, a dificuldade metodológica, etc.)

Outra resposta possível é a utilização de plataformas já existentes no lucrativo mercado da EAD. E aí moram alguns perigos e problemas:

a) Esses materiais e métodos estandardizados não levam em conta as condições e especificidades locais. Como ficariam as atividades nas Escolas do Campo com suas especificidades curriculares e estruturais, a Educação Especial, a Educação de Jovens e Adultos?

b) abre o flanco para um processo de grande terceirização da educação básica e uberização do trabalho docente. Para termos uma idéia, a gigante Króton já se prepara para entrar no mercado de EAD na educação básica.

Apesar da Constituição Federal vedar o uso do dinheiro público da educação para fins lucrativos:

Art. 213. Os recursos públicos serão destinados às escolas públicas, podendo ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, definidas em lei, que:
I – comprovem finalidade não-lucrativa e apliquem seus excedentes financeiros em educação;
II – assegurem a destinação de seu patrimônio a outra escola comunitária, filantrópica ou confessional, ou ao Poder Público, no caso de encerramento de suas atividades.

Já tramita no Congresso Nacional uma proposta de emenda à Constituição Federal do novo FUNDEB de autoria do  deputado Tiago Mitraub (NOVO/MG) que insere o uso do dinheiro público para financiar “o ensino público em instituições com ou sem fins lucrativos”. Além disso, o Governo Federal já ensaia uma nova Medida Provisória para regulamentar o Home Schooling. Assim, criam-se as condições para a entrada definitiva das plataformas e metodologias de EAD na educação básica pública brasileira. Vale lembrar que hoje esses setores já se utilizam das OS’s e outros instrumentos legais para tal. c) Essas plataformas tem sido alvo de denúncias de vazamento e de venda de dados colocando em risco a privacidade dos/as estudantes, trabalhadores/as em educação e das próprias famílias.

Educação não é só conteúdo!

A escola não é fábrica de conteúdos. Ela é um espaço de relações sociais. Como disse Paulo Freire: “Importante na escola não é só estudar, é também criar laços de amizade e convivência“ e complementado por Moacir Gadotti:“A escola não é só um lugar para estudar, mas para se encontrar, conversar, confrontar-se com o outro, discutir, fazer política. Deve gerar insatisfação com o já dito, o já sabido, o já estabelecido. Só é harmoniosa a escola autoritária. A escola não é só um espaço físico. É, acima de tudo, um modo de ser, de ver. Ela se define pelas relações sociais que desenvolve”. Devemos aproveitar esse momento para um reflexão: “a quantidade e a qualidade de conteúdos que lecionamos está a serviço de qual projeto de escola?” Uma capaz de, como dizia Paulo Freire, “despertar a consciência dos oprimidos, inquietá-los e levá-los à ação (libertação)” ou uma a serviço da “educação bancária” que tem como missão eliminar a capacidade crítica dos/as estudantes e acomodá-los/as à realidade. No momento que a escola conteudista tenta se impor para “salvar o ano letivo” é nossa tarefa defender os valores de uma edução libertária e repensarmos o currículo e a organização do sistema fortalecendo a Gestão Democrática e a participação plural nas decisões políticas e pedagógicas da escola e das redes.

Não é hora de salvar o ano letivo. É hora de salvar vidas!

Só é possível pensar em voltar para escola após o fim da necessidade do isolamento social de forma a garantir a vida do conjunto da população brasileira frente a mais grave crise sanitária e econômica dos últimos anos. Nesse cenário, a MP 934 que dispensa escolas de cumprirem os 200 dias letivos e o edital do ENEM publicado pelo INEP – que prevê inscrição para o ENEM 2020 entre 11 e 22 de maio e a aplicação das provas dias 11 e 18 de outubro na versão digital e 1 e 8 de novembro na versão impressa – estabelecem o aceno do MEC à agenda da “normalidade” e da regulamentação da EAD na educação básica. Não é razoável que o calendário do maior instrumento de ingresso no ensino superior seja mantido com as aulas suspensas e estudantes e professores/as em casa. A realização do ENEM na data prevista pelo MEC é um ataque à educação pública. É preciso suspender os editais do ENEM e todos os exames nacionais e vestibulares enquanto durar a pandemia. É necessário também garantir o emprego e salário de todos os/as trabalhadores/as em educação.

O debate da recomposição de calendário deve ser feito em sintonia com os princípios da Gestão Democrática e amplamente discutido com toda a comunidade escolar, após o retorno das atividades presenciais, considerando as peculiaridades do momento visando a redução das desigualdades.

A hora é de salvar vidas. Estima-se que mais de 1 bilhão de estudantes estão sem aula no mundo. Por isso, é fundamental fechar todas as escolas brasileiras, com a suspensão das atividades pedagógicas para conter a propagação do novo coronavírus, de modo a garantir que estudantes e trabalhadores(as) em educação possam ficar em casa. A escola pública é a grande escola do Brasil por isso pode servir de espaço para atendimento a outras medidas emergenciais. Todos os nossos esforços devem ser no sentido de garantir a proteção de toda a população.

A agenda do governo Bolsonaro é de sacrificar muitas vidas para salvar poucos empresários. Cada morte nesse país tem a digital de um governo que ignora e contradiz todas as recomendações da Organização Mundial de Saúde e de especialistas do mundo todo. A superação dessa crise passa pela defesa da vida, do SUS, dos serviços públicos, da garantia de renda e de emprego da população e da defesa da democracia. Não é mais possível conviver com um governo que apresenta para a maioria da população brasileira duas saídas: morrer de fome ou morrer de vírus. Fora Bolsonaro!

Gabriel Magno, professor de Física da Secretaria de Educação do DF e Secretário de Assuntos Jurídicos e Legislativos da CNTE (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação)

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