“Ninguém ouviu um soluçar de dor no canto do Brasil (…) Negro entoou um canto de revolta pelos ares, no Quilombo dos Palmares, onde se refugiou”. O Canto das três raças – Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro
A instituição do feriado de 20 de novembro coloca a cidade de Curitiba na vanguarda de uma agenda nacional, iniciada nos últimos anos, de enfrentamento a preconceitos ainda existentes na sociedade e para a promoção da igualdade racial. Marcas estas fundamentais para a avaliação do estágio democrático em que se encontra qualquer povo. Neste breve artigo, me proponho a tecer algumas reflexões sobre a recente polêmica criada pela Associação Comercial do Paraná (ACP) com relação a aprovação da Lei Municipal que criou o feriado municipal da Consciência Negra.
A Lei 14.224, que instituiu o dia 20 de novembro como feriado municipal da Consciência Negra, foi promulgada no dia 07 de janeiro deste ano, em uma atitude corajosa do presidente da Câmara de Vereadores da capital, Paulo Salamuni. Corajosa, visto a campanha iniciada pela Associação Comercial do Paraná contra o feriado já durante o processo de votação do Projeto de Lei, de autoria do ex-vereador Clementino Vieira. Como não bastasse a campanha, no último dia 7 de fevereiro a Associação Comercial do Paraná e o Sindicato de Empresas da Construção Civil do Paraná ingressaram com uma ação no judiciário paranaense contra a nova legislação. A postura da ACP, preocupada simplesmente com os possíveis “prejuízos financeiros” é retrógrada, pois desconsidera os avanços democráticos que a sociedade civil tem conquistado no último período no campo da cidadania e da luta contra os preconceitos.
A história oficial, e a elite nacional se orgulharam, por muito tempo, da propagada “democracia racial brasileira”. Diferente de outros lugares do mundo, tínhamos um Brasil sem racismo, um país para todos independente da cor, da crença ou do sexo. Enfim, vendeu-se a ideia da inexistência da presença de uma estrutura de desigualdade étnicorracial em nosso país. No entanto, atrás deste véu ideológico, a população negra convive ainda hoje com um quadro de racismo estrutural e institucional. Este quadro é comprovado, quando analisamos qualquer pesquisa séria dos indicadores sociais no Brasil. Entre os mais pobres, a maioria é negra. Quadro ainda resultante do processo escravização e das condições criadas para a “inclusão” dos ex-escravizados na economia brasileira após a abolição. Desde aí a questão racial tem sido negada em nossa sociedade. Por um lado, através de um discurso “politicamente” correto e, por outro, pela falta de coragem política das instituições sociais de implementar uma efetiva agenda para a igualdade racial.
O posicionamento contrário ao feriado se insere neste contexto de negação da questão racial brasileira. Isto fica visível nos argumentos utilizados pela ACP na ação judicial. Uma das alegações é de que a instituição do feriado municipal de 20 de novembro é inconstitucional. Ora, mais de mil cidades no país já instituíram em lei o feriado da Consciência Negra. Entre estas as capitais São Paulo, Rio de Janeiro e Cuiabá. No Paraná, já temos o feriado em Londrina e Guarapuava. Ainda em nível nacional, o feriado é comemorado em seis Estados: Alagoas, Amazonas, Amapá, Mato Grosso, Rio de Janeiro e Mato Grosso do Sul. Será que todos estes Estados e municípios estão atuando contra a Constituição Federal? Outro argumento utilizado é em relação ao suposto prejuízo financeiro que o feriado traria a cidade de Curitiba. Estranho não utilizar o mesmo argumento em feriados como o Dia da Criança, Páscoa etc. Qual o sentido ético e civilizatório que se vê aí a não ser o do ‘santo lucro de cada dia’?
Politicamente correto – Em todos os momentos, a Associação Comercial do Paraná tem expressado o posicionamento favorável a comemoração da data, mas não em forma de feriado. Posição que os leva para uma mansa zona de conforto. Em que pese a possível boa fé de parte dos defensores dos argumentos citados, estes refletem o drama do racismo brasileiro. O reconhecimento da questão racial no país não é possível sem dor e sem medidas efetivas. Há uma dívida social, econômica e moral com a população negra. E esta pode ser reparada com políticas públicas. O “esquecimento” da questão racial brasileira sempre foi o caminho mais fácil. Aliás, foi este sentimento que fez com que Rui Barbosa, poucos anos após a abolição, determinasse através da Circular 29 a queima de todos os documentos relativos a escravidão.
Enquanto nos orgulhamos em dizer que “Curitiba é a cidade de todas as gentes” nos silenciamos às velhas tentativas da nossa elite política e econômica em omitir a presença negra em nossa cidade, em nosso Estado. Não é por acaso que a nossa cidade seja reconhecida mundialmente como uma capital quase 100% europeia. Aqui, temos os descendentes de italianos, alemães, poloneses, ucranianos, japoneses, entre outros. Importantes grupos que têm seus feitos registrados pela estrutura do Estado em festivais, festas, bosques e praças públicas. Isto é uma política pública valorativa, da qual tenho total concordância. Aliás, são povos importantes para a nossa composição enquanto cidade. E a população negra?
Curitiba é a capital mais negra do sul do país – O último Censo do IBGE (2010) aponta Curitiba com uma população negra (pretos e pardos) de aproximadamente 20%. Apesar do Memorial Africano, inaugurado no Pinheirinho há alguns anos, esta presença continua sendo relegada no imaginário da cidade. Pouco se vê de políticas valorativas da presença negra para além dos espaços constituídos pela própria comunidade negra. E pouco se destaca das importantes contribuições que os negros trouxeram para a nossa cidade. Como, por exemplo, as contribuições dos engenheiros negros Rebouças que foram responsáveis pelo projeto de execução da estrada de ferro Curitiba – Paranaguá. E olha que estão imortalizados com o nome de um bairro da Capital… Quem foram os Voluntários da Pátria que aqui têm nome de rua? E qual a importância do Clube 13 de Maio para a memória da nossa cidade?
Aos poucos, com medidas como a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e a instituição do feriado da Consciência Negra, silêncios fundamentais para a manutenção da escravização de africanos e para a manutenção das desigualdades raciais começam a ser rompidos. Assim, vamos começando a construir uma agenda de igualdade racial mais efetiva. Desta forma, ainda que lentamente, a sociedade vai se dando conta da importância das contribuições dos vários povos que compõem nossa sociedade, a fim de combater qualquer processo de inferiorização de qualquer grupo humano. Racismo e ignorância caminham juntos.
Nas palavras do historiador Dornas Filho, “o negro trouxe um estado mais adiantado de civilização, pois ele já vivia na África trabalhando uma agricultura regular, pastoreando o gado e conhecendo a siderurgia”.
Para além deste reencontro com a história, o feriado de 20 de novembro é a comemoração da resistência negra ao processo de escravização. Resistência efetuada de diversas maneiras. E nada melhor do que lembrar um grande herói da luta negra: Zumbi dos Palmares. A luta de Zumbi representa a luta de milhares de brasileiros que no dia a dia sonham na construção de um país justo e livre de qualquer forma de preconceito. Incluir esta data no calendário de feriados da cidade fará com que as futuras gerações recebam uma cidade mais madura, democrática, e consciente da importância da superação de qualquer forma de subjugação e de preconceitos.
Viva Zumbi, herói negro brasileiro! Viva o povo brasileiro!
Luiz Carlos Paixão da Rocha – Professor Paixão – é mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), professor da rede estadual, diretor de Imprensa e Divulgação da APP-Sindicato e militante do movimento social negro do Paraná