A organização Escola sem Partido (EsP) obteve um êxito político inegável, embora parcial. O projeto de lei por ela defendido está tramitando ou tramitou no Senado, na Câmara de Deputados, em Assembleias Legislativas estaduais e em Legislativos municipais. O parecer do procurador-geral da República, de outubro de 2016, que considerou a versão alagoana inconstitucional foi uma derrota expressiva para o programa, mas não definitiva.
Mas, afinal, qual o problema que o EsP identifica e qual solução ele oferece? O que se pode dizer dele uma vez que se assume a democracia como projeto para o País?
O EsP constrói seu problema a partir de duas premissas que podem ser aceitas. A primeira é que a sala de aula não deve ser espaço de proselitismo. De fato, a escola não deve estar a serviço de nenhum partido, grupo político ou religião. A Constituição Federal de 1988 determina que sejam espaços neutros em matéria de religião e politicamente plurais.
A segunda premissa é que há, na sala de aula, relação de poder assimétrica entre professor e alunos. Essa assimetria existe e está baseada na autoridade que a sociedade delega aos professores para que transmitam às novas gerações, sob o estatuto de direitos, saberes considerados necessários ao desenvolvimento de suas capacidades e à participação nas atividades da vida social.
Dessas duas premissas aceitáveis, o EsP extrai uma conclusão excessiva, apresentada como um juízo de fato: o proselitismo em contexto de assimetria de poder retiraria poder educativo das famílias, restringindo a liberdade delas para educar seus filhos conforme os seus valores. Essa afirmação desconsidera que todo discurso, mesmo o mais proselitista, existe em um espaço de controvérsias e é confrontado por outras posições.
Uma terceira premissa, avaliativa, é chamada à cena: a escola não deve limitar o poder educativo das famílias especialmente no que diz respeito a comportamentos e valores. Fica claro, então, o centro da proposta do EsP: deve-se limitar o papel educativo da escola e ampliar a liberdade educativa das famílias.
As propostas decorrem dessa posição e estão apoiadas em duas grandes interdições. A primeira, que parte da distinção entre liberdade de ensinar e liberdade de expressão, é a negação aos docentes da liberdade de expressão.
Segundo o EsP, “não existe liberdade de expressão no exercício estrito da atividade docente sob pena de ser anulada a liberdade de crença e consciência dos estudantes, que formam, em sala de aula, uma audiência cativa”.
A segunda é a proibição da doutrinação política e ideológica, “bem como a veiculação de conteúdos e a realização de atividade que possam entrar em conflito com as convicções morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes”.
A escola pretendida pelo EsP estaria limitada ao papel instrucional (transmissão de conhecimentos específicos), sendo a ela vedado o papel educativo, prerrogativa das famílias porque envolve o cultivo e a transmissão de valores e comportamentos.
Não menos importante é a afirmação do EsP de que a “moral é indissociável da religião” e sua permissão ao ensino religioso, desde que explicitado às famílias. Igualmente relevante é a proibição expressa, no Projeto de Lei do Senado, do que é chamado de teoria ou ideologia de gênero.
Portanto, uma vez que o efeito prático da implementação do EsP seria a restrição da circulação de ideias políticas nas escolas e a liberação, via famílias, da circulação de ideias e valores religiosos, o projeto pode ser entendido também como mais um capítulo da longa disputa pelo controle sobre educação que é travada entre escola e famílias. Mais precisamente, entre Estado e religiões.
A democracia como projeto
A democracia como projeto para a sociedade requer que o preparo para o exercício da cidadania seja também um projeto, como previsto na Constituição Federal de 1988. O cidadão deve ser preparado para discutir racionalmente e participar da definição dos problemas da sociedade, ser capaz de explicitar valores, estar apto a propor, debater e negociar projetos.
Por isso, a melhor solução para o proselitismo em contexto de assimetria de poder está no fortalecimento da escola como instituição promotora do debate informado sobre as questões da vida pública. Como parte do projeto democrático de sociedade, a escola deve estar conectada ao espaço público. Orientada pelo pluralismo de ideias, deve ter em si, pulsando, os grandes debates da sociedade.
Desse ponto de vista, a escola tem um papel educativo a cumprir: o de cultivar e transmitir os valores da democracia. Ela deve defendê-los sempre, mesmo que e, sobretudo, se estiverem em conflito com os valores de outros agentes, inclusive as famílias e as religiões.
Assumindo-se a democracia como projeto, não se pode prescindir da liberdade de pensamento, de expressão, do direito à associação política, tampouco da igualdade perante a lei e os direitos. Igualmente, é inegociável a busca da promoção do “bem de todos sem preconceitos de origem, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de discriminação” (CF/88), inclusive as relacionadas a identidade de gênero ou orientação sexual.
As escolas que formam as novas gerações dos grupos que concentram riqueza econômica e cultural, prestígio social e poder político – as elites – costumam dedicar lugar importante à preparação para o exercício do poder. Nelas, os grandes debates da vida pública estão presentes. Seus alunos são estimulados a participar de fóruns de discussão, nacionais e internacionais, e a participar de associações políticas.
As escolas das elites continuarão a preparar suas novas gerações para o exercício do poder. Os efeitos diretos do EsP, se implementado, seriam produzidos, sobretudo, nas tantas outras escolas que atendem os grupos que não concentram riquezas, prestígio e poder, relegados a espaços de “instrução” com aprendizado restrito do exercício da cidadania.
Não seriam estes últimos, contudo, os únicos a perder. Perderia o sistema escolar brasileiro, que se expandiu tardia e lentamente, é desigual e de baixa qualidade. Perderia a democracia, outro projeto tardio, que se afirma com dificuldade e é sempre contestado. Perderíamos, portanto, todos os que defendemos a democracia como projeto para o país.
**Mauricio Ernica é professor da Faculdade de Educação da Unicamp
Fonte: Carta Educação