Vivemos momentos de incertezas. Junto com a anormalidade instaurada e nossa sobrevivência em xeque, as tecnologias estão cada vez mais presentes, com mais grupos de comunicação sendo criados, mais informações sendo repassadas, mais gritos sendo ecoados pelas redes sociais (e outros tantos silenciados por falta de acesso) ouvidos por nós pelo Facebook, Twitter, Whatsapp e Instagram . Também – e não só – através dos meios tecnológicos, ouvimos neoliberais apoiadores do estado mínimo perguntarem: Cadê o Estado? Assistimos a defensores de planos privados e partidários da chamada Pec da Morte – que congela por 20 anos investimentos em educação e saúde – pedirem o fortalecimento do SUS; críticos ferrenhos da ciência, responsáveis por suspensão de vários experimentos por corte de verbas clamarem por respostas que – vejam a ironia – só podem ser dadas pela ciência. As contradições começam a se desvendar, a hipocrisia também.
Diferente de Ulisses – na épica Odisseia, clássico da literatura grega, que no canto XI narra a visita do herói ao Reino dos Mortos, ao Hades – somos nós que recebemos a visita de Hades. Enquanto Ulisses (re)encontra sua mãe e vários companheiros de armas já falecidos e tem a oportunidade de questionar o oráculo Tirésias sobre o que o futuro lhe reserva, saindo fortalecido na tênue fronteira entre vida e morte, Hades chega para nós sem reservas, não se intimida pela falta de convite e não nos traz rostos conhecidos, ao contrário, nos ameaça levar rostos conhecidos, ou quem sabe, a nós mesmos. Vem invisível como seu significado, sem o alento de um adivinho.
Escolas, restaurantes, cinemas e até shoppings centers se fecham nesta hora. A OMS decreta o distanciamento social, o sociólogo Ben Carrington refuta – em suas redes sociais – o termo, afirmando ser um equívoco, pois, segundo ele, há muito tempo as pessoas não socializavam tanto, termina seu post escrevendo: O que temos que fazer e muitos estão fazendo é o “isolamento físico”.
Nossos corpos que se locomovem usando a força das pernas ou dos meios de transporte possíveis às nossas condições, se aquietam, silenciando aeroportos, rodoviárias, estações de trens, avenidas…
No entanto, há um deus a respeitar, muito mais poderoso que Hades. É o deus-Mercado que se autorregula e se autodeclara autoridade para determinar todas as áreas de nossas vidas sob a égide da chamada economia “neoliberal” e “ultraliberal” que nos assusta com a expectativa de sobrevivência durante e pós pandemia.
Ele se comporta – de novo aqui fazendo analogia ao poema épico – como Circe, a feiticeira que seduz Ulisses, sequenciando à narrativa a periculosidade das Sereias. Circe descreve, antecipadamente e com minúcia, os perigos dos monstros e os meios de lhes resistir. Ulisses – o chefe – transmite a seus companheiros com o mesmo poder de narrativa que ouviu da feiticeira.
O poder das Sereias está no poder da narração de Circe, sequenciada por Ulisses. No Brasil de Paulo Guedes, o vírus – na preleção do governo – será culpado de todas as mazelas, a narrativa ganha força e cria-se diversas vozes de transmissão. Em tempos de isolamento, carreatas são formadas por patrões com avisos de cuidados para não saírem de seus carros, reivindicando a abertura dos comércios.
Com o slogan “O Brasil não pode parar” chamam para a morte os desafortunados que se apinham em meios de transportes precários para garantir um salário de falta num contraste de vida. Inobservado por àqueles que pedem para – na carreata – permanecerem em seus carros. Corroborando com a morte de alguns, o discurso do presidente – nomeado de forma tão assertiva por Eliane Brum como maníaco do Planalto – vai dizer que não é nem ele nem seu Posto Ipiranga os incompetentes, mas sim, “a histeria” com a “gripezinha” . Parece, pois, que não nos basta sermos acometidos da visita de Hades. O “deus-Mercado” também invade a nossa casa com ameaças de morte em vida.
Em meio a este cenário caótico, chega a nós – professores e trabalhadores da educação – deliberações, instruções, informações desencontradas, desorganização.
Ora estamos em recesso, ora estamos em licença, ora somos enxovalhados por decisões que se limitam ao ordenamento do que fazer, pois não nos cabe pensar, apenas executar.
As tele aulas, romantizadas em EAD, foram colocada em funcionamento com um alto grau de improviso.
Para o professor Lalo Watanabe Minto, do Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da Unicamp, situações de crise exigem estratégias à altura. Substituir o calendário escolar por tele aulas é uma forma irresponsável de precarização com o objetivo de seguir o curso normal. Porém, não há normalidade. O professor prossegue dizendo não ser possível fazer qualquer tipo de transposição de uma hora para outra, alerta para o discurso falacioso de muitos que defendem que a resistência às tele aulas seria um tipo de conservadorismo da escola e finaliza defendendo que conservadorismo é fazer de tudo para manter as coisas no seu curso normal em situação de anormalidade.
Há um esvaziamento no debate sobre condições de trabalho, como se agora, todos fossem obrigados a – usando uma palavra da moda – empreender. A escola é um espaço de disputa ideológica. Há algum tempo, assistimos constantemente a tentativa de calar nossa voz através de projetos absurdos como a Escola sem Partido, o aval dado aos alunos para filmar e denunciar o professor quando este tiver que adentrar num conteúdo em que questões políticas-partidárias ou seja lá o que for que desagrade o interlocutor seja abordada. O vírus é só uma desculpa para por em prática algo que já vem sendo cogitado e que ganhou espaço nas faculdades privadas com a adoção de disciplinas optativas em EAD, levando centenas de profissionais destas instituições ao desemprego. Disciplinas como Sociologia e Filosofia – provavelmente – serão as primeiras a serem extintas num projeto (agora não mais político) pedagógico que vise à mercantilização da educação.
Não nos enganemos, por trás desse engodo, afirma o professor Minto, há toda uma indústria que se formou no campo educacional que vê uma grande oportunidade de faturar mais e tudo isso pode significar que o ensino passe a ficar mais dependente ainda do uso de certas tecnologias privadas.
Enquanto Ulisses, ardilosamente, embriaga Ciclope com os mais preciosos vinhos dizendo chamar-se Ninguém, num rito de sobrevivência fura o olho do gigante para que este, ao gritar por socorro diga: “Ninguém me feriu, ninguém me feriu”, nós não podemos furar nossos próprios olhos para só nos restar tatear os caminhos escolhidos por – na concepção de Adorno – anti-heróis como Ulisses que, diante da fragilidade e cegueira do Ciclope, grita seu verdadeiro nome como prova de sua autoridade e identidade.
O velho discurso do “sabe com quem você está falando?” obra do sociólogo Roberto da Matta que se (re)apresenta como um rito autoritário, marcando mais violentamente as classes sociais organizadas hierarquicamente. A autoridade dessa expressão não está velada, muito pelo contrário, se escancara em forma dos verbos no infinitivo privatizar, militarizar, desregulamentar, flexibilizar. Os verbos favoritos do neoliberalismo que, para Eduardo Galeano, “vomita homens”. O trabalhador? Ah o trabalhador que vá empreender. Livre, autônomo para morrer trabalhando.
Não nos permitamos – por medo – saber do canto das Sereias por quem tapou nossos ouvidos e se deleitou amarrado para não sucumbir na beleza e encantamento da voz suave. Ulisses quer para si somente o que interessa – o prazer da arte, sem o poder de ação. Para a professora Jeanne Marie Gagnebin é a forma perfeita para a arte ser tolerada numa sociedade fundada pela dominação.
Se não reagirmos diante das mazelas e da falácia das tele aulas apresentadas pelo empresário do ramo das tecnologias e Secretário da Educação como a salvação da prática docente e discente num tempo que cheira morte, ouviremos – longe – o canto das Sereias – que quiçá – poderia nos salvar, porém, a narrativa nos será dada pelos que continuam no poder.
*Vera Vilma Fernandes Leite é professora da rede pública de Ensino em Cascavel (PR)