“ELES TAMBÉM TRABALHARAM”

“ELES TAMBÉM TRABALHARAM”

**Por Vera Vilma Fernandes Leite

Foto: Getty Images

Uma reflexão sobre o que é ser velho e o isolamento vertical em tempos de coronavírus.

A vida humana é frágil, vivemos como o equilibrista que tenta se manter em pé numa posição difícil e incômoda que precisa da rede de proteção caso se desiquilibre. A seguridade social, constitucionalmente, é nossa proteção formada de políticas sociais com o objetivo de assegurar-nos em situações de doença, desemprego e velhice.

No entanto, em nossa sociedade subjugada a classes, segregada as mais altas e cruéis contradições sociais, o velho é – privilegiado – pelas crueldades advindas do distanciamento, da culpabilização e esquecimento. Como se sabe, o que define classe social é a posição ocupada pelo sujeito nas relações objetivas de trabalho. O velho não pertence à classe, o velho é submetido a uma camada da população, no universo das relações sociais por duas vezes humilhado: pela dependência e pela velhice.

Mas afinal, o que é ser velho? Para Ecléia Bosi, ser velho em nossa sociedade capitalista é sobretudo, sobreviver e lutar para continuar sendo homem/mulher. Porém, quando começamos a envelhecer? Aos 60? 65? 70 anos? O valor da vida muda com a idade? O custo de vida aumenta na velhice? O voto de uma pessoa idosa vale menos do que o de outro eleitor? O voto após os 70 anos é facultativo. A cidadania também?

O desrespeito ao velho começa, segundo a pesquisadora Cecilia Minayo – estudiosa da violência do ciclo da vida – na ideia contraditória construída pelo Estado brasileiro de que eles são um problema para a economia. Contraditório por quê? Porque de um lado o Estado formula leis e políticas públicas assegurando direitos aos idosos, garantindo que todos os brasileiros são iguais perante a lei, por outro lado, os coloca como responsáveis pelo déficit da Previdência e políticas direcionadas à saúde. Para a socióloga Guita Debert, esse processo é a tentativa de privatização da velhice, isto é, a velhice é entendida como problema do velho e não uma questão social relevante para o Estado. Oprime-se o velho com o abandono dos asilos, com comportamentos psicológicos subjetivos, sutis e quase invisíveis através da sujeição vexatória, da obediência e submissão. Muitas das vezes, esse desrespeito está dentro de casa, sendo cometido pelos mais próximos, que graças à condição de vulnerabilidade social, intelectual e psicológica, projeta suas frustrações em quem é mais sensível.

O que é, pois, ser velho e pobre na sociedade capitalista? Não é só sobreviver, é pior que isso, é sobreviver impedido de ter memória, sofrendo as adversidades do corpo marcado pelo tempo, que se fragmenta. Ser velho e pobre na sociedade capitalista é sinônimo, muitas vezes, de trabalhar até morrer e trabalhar até morrer também é esquecer. Ser velho e pobre no Brasil é, em momento da pandemia, ouvir barbaridades de empresários sem dharma, inescrupulosos que vociferam em favor da economia, reduzindo o velho à monotonia da repetição sufocando suas lembranças – como bem mostra a literatura ao reproduzir a voz dos derrotados nas tristes narrativas em que a vitória do vencedor pisoteia toda e qualquer história, costume, prática, tradição dos vencidos.

Histórias que o livro de História não conta. Ser velho e pobre no Brasil é ouvir de Roberto Justus, de Junior Durski, de Alexandre Guerra, de Luciano Hang entre tantos outros afortunados que não se importam com os dados da OMS (Organização Mundial da Saúde) sobre o coronavírus e resolvem – eles próprios – criar estatísticas a respeito do contágio, e do alto de suas arrogâncias declararem que a doença “só mata velhinhos” e que na favela “não vai acontecer porra nenhuma se entrar o vírus”, colocando-se como semideuses gritam que 120.000 pessoas dependem diretamente do emprego que eles oferecem.

MENTIRA, pois se eles descobrirem meios de substituir pessoas por qualquer “coisa” o farão. Na verdade, são eles que dependem de seus trabalhadores. O velho pobre do Brasil ouve essas falas rancorosas, sentindo-se impotente, culpados, fragilizados e abalados, pois é dele, de seus filhos e netos que os “homens de negócio” falam com desprezo, corroboradas com o discurso do presidente da república que vem a público – como bem caracterizou o economista Eduardo Moreira – com um discurso de líder de seita radical que se sente acuado e chama todos para o suicídio coletivo – defender o isolamento vertical – cuja ideia é, ao invés de mandar todo mundo para casa, deve-se isolar somente as pessoas mais vulneráveis ao novo coronavírus. Pois, pelo que se sabe até agora, a taxa de complicações e mortes é bem maior em alguns grupos: indivíduos acima de 60 anos, portadores de diabetes, hipertensão e doenças cardíacas ou pulmonares. Parece simples, no entanto, 40% dos idosos, segundo a Datafolha estão na classe D e E. Isso significa que, grande parte mora com famílias numerosas, em casas com cômodos reduzidos, com convivência conjunta, muitos custeando o sustento da casa.

Como criar isolamento vertical com essa realidade? Justamente quando o Reino Unido e Holanda voltam atrás e resolvem ouvir a ciência com a ocasião da publicação da pesquisa do Imperial College London, na Inglaterra, mostrando qual o impacto das medidas não-farmacológicas para reduzir a mortalidade pela Covid-19.
Ser velho e pobre no Brasil é viver cheirando a morte, convivendo com tratamentos desleais, infiéis, não confiáveis que ficaram evidentes com as declarações já mencionadas. Quem trata os mais velhos com essa indiferença é desonesto com a sua própria história. Desonra-os, são ingratos.

Ricos empresários, dirigentes do país que induzem pessoas a defender o isolamento vertical estão disseminando o terror para a população, aproveitando-se da vulnerabilidade emocional, do medo e da insegurança que acomete a todos.

Não morrerão somente “velhinhos”, é um efeito cascata. Hoje, segundo dados do Ministério da Saúde, 95% das UTIs são ocupadas no Brasil sem a coronavírus. O que isso significa? Aumentando o surto da doença, morrerão muitas pessoas que precisam de UTI e não terão atendimento, pois os leitos estarão sendo ocupados por infectados pela covid19. Atribuir à solução do problema no isolamento vertical é, no mínimo, covardia.

Por que ao invés disso – como bem sugeriu Eduardo Moreira – o pequeno e médio empresário, o trabalhador informal, o desempregado, os profissionais liberais não exigem do Estado brasileiro o que está sendo oferecido na Alemanha, na França, na Inglaterra, pois é legítimo, é direito. O Estado tem obrigação de salvaguardar a vida de todos nós, é uma obrigação constitucional. Nem que para isso tenha que mexer nas grandes fortunas.

O importante é preservar a VIDA.

Mas não, graças à covardia do presidente da república – Jair Messias Bolsonaro – é mais fácil fazer política sendo surdo a ciência, a matemática e a estatística e ouvindo somente a economia. Enquanto isso, o velho pobre no Brasil, acuado, oprimido e culpabilizado por ocupar UTIs, assustados, questionam-se fazendo coro: “ O que nos resta ainda?”

O livro Velhos Amigos da pesquisadora em psicologia social Ecléa Bosi, conta com uma apresentação muito especial da poetisa Adélia Prado, ela escreve: “Velhos Amigos bate à porta e o recebemos na cozinha, lugar bom de escutar o guardado na memória do afeto”. E se ainda assim, insistirmos em não entender a metáfora, continuarmos ouvindo ecos de falas insanas que acreditam que só a economia e o trabalho importam, termino esse texto me apropriando do final do admirável estudo de Bosi sobre memória e lembranças de velhos dita por um de seus entrevistados para coleta de dados, o sr. Amadeu.

“Eles também trabalharam”.

**Vera Vilma Fernandes Leite, professora da rede pública do Estado do Paraná 

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