Durante a pandemia, sem consultar a comunidade escolar, ignorando soluções alternativas e a privacidade dos(as) usuários(as), o então secretário Renato Feder deu início à adoção em massa de plataformas digitais na rede estadual de educação.
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Não foi um fenômeno local, mas a escalada da plataformização no Paraná encontra poucos paralelos no país. Hoje, aplicativos e sites de uso obrigatório controlados por empresas são acessados por cerca de um milhão de estudantes e professores(as) diariamente.
O contingente representa uma imensa base de dados, até então sob a guarda do Estado, entregue de bandeja a agentes que sobrevivem da extração em massa e análise de informações pessoais para obter lucro.
A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), em vigor desde 18 de setembro de 2020, destaca a prioridade absoluta de crianças e adolescentes, assegurando o direito à privacidade de informações sensíveis, incluindo o desempenho pedagógico.
Não há notícias de que o governo do Paraná esteja preocupado. Mas os(as) professores(as) estão. De acordo com a pesquisa “Plataformização da Educação”, realizada pela APP-Sindicato e o Instituto IPO, 86,7% dos(as) educadores(as) concordam que as plataformas atendem a interesses da iniciativa privada.
Proporção semelhante, 85,7%, acredita que a adoção de plataformas serve ao controle e ao monitoramento do trabalho dos(as) professores(as). Para 62%, as tecnologias representam riscos à privacidade e à segurança de dados dos(as) profissionais e estudantes.
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De fato, a absoluta falta de transparência dos termos de uso, dos critérios utilizados para a definição das ferramentas e do tratamento dispensado aos dados pessoais da comunidade escolar é estarrecedora.
Múltiplas camadas de privatização
Antes mesmo da pandemia, cerca de 65% das universidades públicas e secretarias estaduais de educação já estavam expostas à lógica de monetização das grandes empresas intituladas pelo acrônimo GAFAM (Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft).
A informação é do mapeamento realizado pelo projeto Educação Vigiada, conduzido por dois núcleos de pesquisa da Universidade Federal do Pará (UFPA) e pela iniciativa Educação Aberta.
O trabalho lança luz sobre o avanço do chamado capitalismo de vigilância no terreno fértil da educação pública brasileira. A expressão, popularizada por Shoshana Zuboff, pesquisadora de Harvard, designa o modelo de negócios do qual a Google é pioneira.
Mas a gigante do vale do silício não está sozinha. Segundo levantamento preliminar realizado pela professora doutora Carolina Batista Israel, da UFPR, o governo do Paraná já gastou mais de R$ 53 milhões com plataformas educacionais.

“O Desafio Paraná é da Quizziz, que é americana. A Leia Paraná é da Odilo, espanhola. O Inglês Paraná é da EF English, uma empresa suíça. A única nacional é a Alura. O governo compra essas plataformas de agentes privados e coloca uma roupinha governamental”, afirma a pesquisadora.
A captura da educação pública e sua mercantilização via bigtechs se evidencia em iniciativas como o programa Educação para o Futuro, financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), órgão internacional sediado em Washington. A parceria atua como fonte de recursos e um guarda-chuva para as diferentes plataformas adotadas pela rede.
Elas pertencem a empresas que utilizam técnicas de inteligência artificial para obter previsões sobre o comportamento dos usuários(as) na Internet – como suas buscas e preferências –, traçar e influenciar perfis de consumo e, com isso, maximizar os ganhos ofertando produtos e serviços.

O site da Alura, por exemplo, extrai dados das ações dos(as) usuários(as), monitora a interação com o computador e usa cookies (pacotes de dados enviados ao navegador) para criar perfis de publicidade direcionada.
Há, por fim, a dimensão de controle do conteúdo pedagógico e do desempenho dos(as) trabalhadores(as) e alunos(as). “São atores privados que decidem quais plataformas serão usadas, o que vai ser ensinado e como vai ser ensinado”, comenta Carolina.
O processo de privatização assume, portanto, três camadas distintas: abocanha recursos públicos, apropria-se de dados pessoais e solapa a autonomia docente.
Sonhos de robô
A utopia de submeter a educação e outras esferas da sociedade à lógica de qualidade total é uma aspiração antiga. “Esses fenômenos podem ser lidos como uma nova investida tecnocrática, um movimento social que surgiu nos Estados Unidos no começo do século XX”, conta Carolina.
A tecnocracia parte do princípio de que é possível – e necessário – substituir a política e as paixões humanas por modelos de gestão social estritamente técnicos. Uma proposta que, em si, também é política.
Não há nada de novo sob o sol no Paraná. Na edição de junho de 1996 do tradicional jornal da APP, o 30 de Agosto, a professora doutora Maria Dativa analisava como o novo Programa de Ensino Médio do governo Lerner inoculava, nas escolas públicas, a lógica do capital.

O avanço tecnológico das últimas décadas reavivou o sonho tecnocrático, expresso no controle total do trabalho pedagógico, do desempenho dos(as) estudantes, na imposição de metas e em premiações por produtividade.
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O custo tem sido elevado. Como revelado na primeira reportagem sobre a pesquisa “Plataformização da Educação”, mais de 70% dos(as) educadores(as) atribuem impactos negativos na saúde física e/ou mental ao uso de plataformas atrelado a metas. Estudantes também expressam intenso sofrimento.
“Quando eu gerencio uma turma, um aluno, a partir de índices, eu estou colocando a primazia do número e do técnico acima do humano, acima do que essa pessoa necessita em sua particularidade, em sua singularidade. O resultado desse tipo de gerenciamento é a perda do lado humano, do processo de cuidado com o outro. Vemos os dados em massa como se estes índices dissessem mais do que as próprias pessoas tem a dizer”, finaliza Carolina Israel.
Plataforma Zero
Para Carolina, a percepção da categoria de que as tecnologias são empregadas para o monitoramento da atividade docente em escala individual e em prol de interesses privados é “um passo fundamental para que se possa construir uma agenda de resistência ao emprego dessas tecnologias de controle, porque é o que elas são”.
Em protesto contra o uso obrigatório de plataformas e para denunciar o assédio e a pressão no ambiente escolar, os(as) educadores(as) desligarão as máquinas no dia 30 de agosto. A proposta de greve digital, chamada de Plataforma Zero, viralizou entre estudantes no Tiktok, demonstrando o potencial de mobilização do tema.

A APP trabalha para abrir debate com a Secretaria da Educação e propor o estabelecimento de uma política que priorize a interação humana e a autonomia, mantendo as tecnologias como ferramentas que auxiliem o trabalho pedagógico e não como instrumentos de controle e substituição do papel dos(as) professores(as).
Em manifesto publicado na Edição Pedagógica do Jornal 30 de Agosto, a APP propõe a regulamentação do tempo de estudo e trabalho diante das telas, a oferta de plataformas públicas, o respeito à autonomia e à gestão democrática como princípios inegociáveis e uma educação universal, diversa, plural e inclusiva, em contraponto à sua determinação por interesses do mercado.
Sobre a pesquisa
A pesquisa “Plataformização da Educação” foi realizada pelo IPO entre os dias 28 de junho e 7 de julho de 2023, com 300 professores(as), pedagogos(as) e diretores(as) da ativa sindicalizados(as) à APP. A amostra é representativa por região do estado, sexo e faixa etária e a abordagem foi conduzida por ligações telefônicas.
O estudo foi contratado pela APP-Sindicato. A Secretaria Educacional da APP trabalhou em conjunto com os(as) cientistas sociais do Instituto para desenvolver o questionário, que incluía perguntas abertas e estimuladas. Para completar as 300 entrevistas, que somaram mais de 100 horas de gravação, cerca de 6 mil educadores(as) foram contatados. A margem de erro é de 5,9% com intervalo de confiança de 95%.
Pesquisadores(as) e veículos de imprensa podem ter acesso a mais detalhamentos entrando em contato com a Secretaria de Comunicação da APP pelo Whatsapp (41) 9249-2328.
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