Educação inspirada em Paulo Freire poderia tirar o Paraná do topo de ranking de analfabetismo

Educação inspirada em Paulo Freire poderia tirar o Paraná do topo de ranking de analfabetismo

Estado possui maior número analfabetos da região sul, entre as pessoas com 15 anos ou mais; mulheres são as mais afetadas

A proposta de educação criada pelo educador e filósofo Paulo Freire, na década de 60, permitiu que trabalhadores(as) fossem alfabetizados(as) em apenas 40 horas. Apesar de revolucionária, a iniciativa nunca foi adotada como política de educação no país e pode ser uma das razões que explicam a existência de milhões de analfabetos(as) no Brasil.

Caso estivesse vivo, o patrono da educação brasileira completaria 102 anos nesta terça-feira (19). A data é um convite para celebrar o legado desse brasileiro admirado no mundo inteiro, mas também para refletir sobre os números da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua: Educação 2022.

De acordo com os dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), embora o Brasil tenha registrado um recuo na taxa de analfabetismo das pessoas com 15 anos ou mais, de 6,1% em 2019 para 5,6% em 2022, o país ainda possui 9,6 milhões nesta condição. 

Os números elevados são um indicativo e um alerta de que o Brasil ainda está longe de cumprir a meta 5 do Plano Nacional de Educação (PNE), que estabelece a superação do analfabetismo até 2024. O propósito desse item é alfabetizar todas as crianças até o final do 3º ano do ensino fundamental.

Paraná na liderança

Embora tenha um índice melhor do que a média nacional, o Paraná lidera o ranking do sul com mais de 365 mil (3,9%) jovens e adultos que não sabem ler nem escrever. A quantidade é maior do que a população inteira da cidade de Ponta Grossa, a quarta cidade mais populosa do estado.

O valor também é superior à soma da quantidade de analfabetos(as) dos outros dois estados da região. Pelos dados da PNAD – Educação, Rio Grande do Sul possui 232 mil (2,5%) e Santa Catarina 127 mil (2,2%).

A pesquisa do IBGE também expõe a desigualdade de gênero no acesso à educação no Paraná. Enquanto o analfabetismo no estado abrange 3,2% dos homens com idade de 15 anos ou mais, o índice atinge 4,7% das mulheres da mesma faixa etária. Em números, são 144 mil jovens e adultos paranaenses do sexo masculino e 221 mil do sexo feminino sem saber ler ou escrever.

A análise do estudo mostra que a maior parte dos(as) adultos(as) analfabetos(as) no estado pertencem à faixa etária acima dos 40. A grande maioria, 248 mil pessoas, possui 60 anos ou mais. O outro grupo com valor expressivo, com 92 mil pessoas, corresponde aos que têm entre 40 e 59 anos.

 


Não é surpresa

Para a professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e pesquisadora em temas como alfabetização de jovens e adultos e Paulo Freire, Maria Aparecida Zanetti, a posição do Paraná neste ranking não seria novidade. 

“Salvo melhor juízo, esse é um dado que sempre esteve presente. O sul não é tão maravilha assim. Muitas vezes o sul tenta olhar para o nordeste pensando que as mazelas de analfabetismo estão lá. Não, elas estão aqui no sul do país e no Paraná não é diferente. A gente tem isso sim”, diz.

Já em relação ao percentual de analfabetismo maior entre as mulheres, uma hipótese levantada pela especialista é de que a estatística tenha relação com a pandemia e o crescimento do número de mulheres responsáveis pelo sustento da família. Segundo ela, historicamente as mulheres registram escolaridade um pouco acima da dos homens.

“Antes de serem estudantes, são trabalhadoras que precisam garantir as condições de vida e a sobrevivência das suas famílias. Então, como as mulheres passaram a assumir muito fortemente esse papel, talvez isso explique o fato de estarem com patamar maior em relação ao analfabetismo”, sugere.

Pensamento de Paulo Freire permanece atual, diz a professora Maria Aparecida Zanetti – Foto: Youtube Undime SC / reprodução

Pensamento inovador

Utilizado pela primeira vez em 1963, na cidade de Angicos, sertão do Rio Grande do Norte, o sistema de Paulo Freire consiste em estimular a alfabetização a partir das experiências dos(as) próprios(as) estudantes.

Ao invés da técnica tradicional, em que o(a) professor(a) ensina palavras e sílabas, Freire estimulava os(as) alunos a decodificar palavras presentes em suas realidades. Nessa dinâmica, construíam novas palavras, aumentavam o repertório e ampliavam a compreensão do contexto em que viviam.

Zanetti explica que, diferente do que se diz comumente, Freire não é o criador de um método, mas de um sistema de alfabetização. A proposta consiste em uma crítica ao formalismo e ao mecanicismo da educação brasileira, que ele chamou de bancária. 

“O que o Paulo Freire vai propor como sistema de alfabetização, não como método, é que as pessoas possam fazer uma leitura crítica do mundo para daí fazer a leitura da palavra. Então, um sistema de alfabetização profundamente subversivo, transformador, libertador”, explica.

Essas características associadas com o golpe militar podem explicar porque o sistema nunca foi implantado no Brasil. Segundo a professora, após ficar conhecido nacionalmente, Freire foi convidado a coordenar o programa nacional de alfabetização, mas a iniciativa não prosperou devido ao regime ditatorial.

“Na época, a gente tinha 17 milhões de jovens e adultos não alfabetizados e o voto do analfabeto estava proibido. Se as pessoas fossem alfabetizadas criticamente fariam uma leitura crítica do mundo e uma leitura da palavra. Isso teria mudado a correlação de forças políticas deste país. Então, Paulo Freire obviamente foi extremamente mal visto”, conta.

Permanece atual

Outro estudioso que defende o legado de Paulo Freire e que acredita no potencial de sua proposta para mudar a realidade brasileira é o historiador e doutor em Educação, José Eustáquio Romão. Em entrevista à BBC Brasil, o especialista afirmou que, embora Paulo Freire seja uma referência mundial nos estudos da pedagogia nas universidades, nunca foi aplicado na educação brasileira. 

Considerando declaração feita por ele, a aplicação do sistema teria permitido ao Brasil atingir a meta do PNE de 2024 em 2016. “Estou convencido de que se aplicarmos hoje (o sistema), acabamos com o analfabetismo no Brasil em um ano”, disse o especialista em 2015. Na época, o país tinha 13 milhões de analfabetos(as).

Para Zanetti, o pensamento de Freire permanece atual frente aos desafios da educação brasileira e também do Paraná, onde o governo atual tem imposto plataformas digitais, padronizado os materiais de ensino e subtraído a autonomia dos(as) professores(as). Ela cita como exemplo a passagem de Freire como gestor da educação de jovens e adultos da cidade de São Paulo.

“Paulo Freire nos ensinou que é possível ter uma escola pública progressista, popular, inclusiva, democrática, dialógica. Com certeza era isso que ele queria para toda a escola pública brasileira. E isso, sem dúvida, vai incomodar quem quer uma escola conservadora, desqualificadora, elitizada, silenciadora. Então, Paulo Freire tem, sim, um pensamento profundamente atual”, afirma.

 

 

Notável brasileiro

Paulo Reglus Neves Freire nasceu no dia 19 de setembro de 1921, em Recife, Pernambuco. Morreu em maio de 1997 e em 2012 foi declarado patrono da educação brasileira. É o terceiro autor mais citado do mundo em trabalhos acadêmicos na área de humanidades. Seu reconhecimento ainda inclui 27 títulos de doutor honoris causa e o Prêmio de Educação para a Paz da UNESCO, em 1986.

Para celebrar o legado freiriano, a APP preparou um material especial para que professores(as) e funcionários(as) trabalhem a temática durante a data. Entre os conteúdos disponibilizados estão documentários, sugestões de textos e até cordéis com homenagem ao patrono da educação brasileira. Confira abaixo.

:: Para ler o mundo: 12 documentários e entrevistas com Paulo Freire

:: 10 fatos pouco conhecidos sobre Paulo Freire

:: Centenário de Paulo Freire: carta de uma professora aprendiz ao querido mestre

:: No ultimo dia 19 de setembro, Paulo Freire completaria 99 anos. 

:: Encontro com Paulo Freire – Cordel

:: Documentário: Paulo Freire, um homem do mundo

 

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