O governo federal acaba de anunciar um pacote de medidas microeconômicos com o objetivo de impedir o aprofundamento da recessão. Recentemente, o IBGE divulgou que o PIB está em queda há três trimestres consecutivos e deverá passar por retração de 4% em 2016. Essa projeção sinaliza claro processo de depressão econômica, situação que a economia brasileira não vivenciava desde a crise de 1929.
O conjunto de medidas anunciadas pelo governo, no entanto, não é um programa de estímulo à economia e não será capaz de impulsionar a atividade produtiva. Esperava-se do governo um conjunto de iniciativas que mobilizasse investimentos e retomasse o consumo interno, com o Estado assumindo papel de indutor da empreitada de tirar a economia da recessão.
As Centrais Sindicais têm demandando, em nome de todos os trabalhadores, que o governo tome inciativas que enfrentem o crescimento do desemprego e o travamento da atividade produtiva.
As medidas anunciadas ainda deverão ser detalhadas e transformadas em projetos de lei, medidas provisórias, cuja implementação ocorrerá ao longo de 2017 e 2018.
A seguir são detalhadas e analisadas as medidas propostas pelo governo.
1. Regularização tributária
Pretende viabilizar o recebimento de tributos em atraso por parte de pessoas físicas e jurídicas, na esfera federal.
O desaquecimento econômico reduziu a capacidade das empresas para honrar compromissos em dia, além de provocar aumento inédito e preocupante no seu endividamento. Para manter operações, as empresas privilegiaram pagamentos a fornecedores, empregados e bancos e postergaram o recolhimento de tributos. Essa prática cria um passivo que, no médio e longo prazo, pode inviabilizar a operação das empresas. Por outro lado, o não recolhimento de tributos ao governo, por longo período, tem impacto sobre o orçamento público, comprometendo o funcionamento do estado.
O governo, na Receita Federal, propõe um Programa de Regularização Tributária (PRT) que visa permitir às empresas e pessoas físicas em dívida com “quaisquer tributos administrados pela Receita Federal” a quitação parcelada, com prazos que vão de 60 a 96 meses.
A medida procura amenizar a situação econômico financeira das empresas endividadas e, ao mesmo tempo, recompor o caixa do governo, que também passa por graves problemas.
Essa medida funciona, na realidade, como um grande Refis (Recuperação de Créditos Fiscais) que o governo costuma fazer de tempos em tempos. Essa medida alivia a situação das empresas em dificuldades, mas não resolve o problema principal, principalmente das médias e pequenas, que é o acesso ao crédito com custos compatíveis com suas capacidades empresariais e de pagamento.
2. Incentivo imobiliário
A medida visa regulamentar a Letra Imobiliária Garantida (LIG), instrumento [financeiro] de captação para o crédito imobiliário.
Trata-se de um título que deverá ser comercializado pelo sistema bancário e visa captar recursos para investimentos na construção civil.
A LIG é um título de crédito emitido por instituições financeiras. Possui as características do Covered Bond (título com garantia real) existente nos Estados Unidos da América, constituindo-se em instrumento de dívida do emissor (obrigação do banco que emitiu a letra), garantido por um pool de créditos imobiliários que oferecem lastro (garantia real) para as emissões desses títulos. É uma fonte alternativa para prover recursos para o crédito imobiliário.
Os investidores (pessoas que adquirem a LIG no mercado financeiro) têm dupla garantia, representada pelos ativos das instituições de crédito que emitiram a letra e, no caso de insolvência dessas, pelo lastro da Carteira de Garantias, (constituído pelas obras em andamento e finalizadas e à venda no mercado), legalmente protegido e garantido para pagamento prioritário aos investidores antes dos demais credores da instituição bancária onde a operação foi realizada.
Já existe no mercado a Letra de Crédito Imobiliário (LCI), um produto financeiro que também possui lastro no crédito imobiliário, isto é, nas operações de crédito contratadas na comercialização de imóveis.
Os aplicadores em LIG, ao contrário do LCI, teriam preferência para receber os recursos aplicados em relação aos débitos de natureza fiscal, previdenciária ou trabalhista – “pagamento prioritário aos investidores antes dos demais credores” (de acordo com documento do Ministério da Fazenda de 2015).
Portanto, a LIG fornece ao aplicador garantias maiores que a LCI. Com garantias maiores, o custo de captação, isto é, o quanto esse papel pagará de juros poderá ser menor, reduzindo, na outra ponta, o custo dos financiamentos imobiliários e incentivando esse mercado.
Entretanto, as aplicações em LCI estão em baixa, uma vez que o mercado imobiliário está desaquecido devido à crise econômica, ao desemprego, à redução dos salários e às expectativas quanto ao futuro da economia.
Dificilmente, um novo produto (LIG) aquecerá esse mercado sem que antes sejam adotadas medidas mais substantivas para a retomada do crescimento econômico.
3. Redução do spread bancário
O spread, termo em inglês que significa “margem”, é a diferença entre o que os bancos pagam na captação de recursos e o que eles cobram ao conceder um empréstimo para uma pessoa física ou jurídica. No valor do spread bancário estão embutidos, além do lucro da operação, despesas administrativas, impostos como o IOF e o CPMF e uma suposta taxa de inadimplência. O spread bancário no Brasil é um dos mais elevados do mundo. Na visão dos agentes do sistema financeiro, o spread elevado decorre do alto risco das operações de crédito no Brasil, dada a elevada inadimplência.
As medidas anunciadas para a redução do spread são a duplicata eletrônica e o aperfeiçoamento do cadastro positivo, que visam reduzir o risco das operações de crédito realizadas pelos bancos e serão regulamentadas por medida provisória. A duplicata eletrônica permitirá a centralização de informações sobre a situação dos devedores e, com isso, possibilitará aos credores um monitoramento mais rigoroso do risco de crédito. O cadastro positivo, por sua vez, poderá facilitar o acesso ao crédito dos clientes adimplentes.
O acesso mais rápido às informações e o monitoramento mais detalhado e rigoroso da situação dos devedores é importante para uma melhor avaliação do risco de crédito das operações. Entretanto, o impacto dessas medidas na queda do spread não é direto nem imediato, pois elas não atacam as reais causas das elevadas taxas praticadas no Brasil, que decorrem dos altos patamares da taxa real de juros. Ou seja, ao contrário do argumento corrente, o risco das operações de crédito no país deve-se às elevadas taxas de juros e dos spread cobrados dos clientes, pois elas aumentam as possibilidades de inadimplência. A breve experiência de convivência da economia com taxas de juros e spread mais baixos, em anos recentes, mostrou que a taxa de inadimplência caiu de forma expressiva.
Podemos agregar às razões para o alto spread a grande concentração de capitais no setor bancário e financeiro do país, ambiente propício para abusos por parte dos fornecedores dos serviços.
4. Cartões de crédito
As medidas visam a) regularizar uma prática comum no comércio varejista, que é a diferenciação entre os preços dos diversos meios de pagamento – dinheiro, cartão de crédito e débito, boleto e cheque; b) reduzir o prazo de pagamento da operadora de cartões para o estabelecimento comercial e, com isso, diminuir o custo do crédito rotativo para o cliente, que hoje fica em torno de 476% a.a. e; c) universalizar o uso de todas as bandeiras de cartões em qualquer tipo de máquina de cobrança, de modo a evitar a exclusividade de emissores e credenciadores e reduzir os custos de aluguel das máquinas para os lojistas. Em suma, as medidas pretendem estimular a concorrência entre as operadoras de cartões, diminuir custos da utilização de cartões de crédito pelos lojistas e clientes, aumentar as vendas e propiciar a melhoria do fluxo de caixa dos lojistas.
A redução dos custos de utilização dos cartões de crédito e a regularização de descontos no uso de meios de pagamento diferentes podem estimular, de forma pontual e residual, o aumento das vendas no comércio e melhorar o fluxo de caixa dos lojistas. Entretanto, são medidas que não atacam as reais causas da forte queda no consumo das famílias e da deterioração da situação financeira das empresas, problemas ocasionados pela elevação contínua do desemprego e pelas altas taxas de juros e spread.
5. Desburocratização
As medidas visam simplificar o E-Social e implementar a Nota Fiscal de Serviços eletrônica (NFS-e) e o Sistema Público de Escrituração Contábil (SPED), ampliando o universo de empresas declarantes, de forma a centralizar o recolhimento de tributos e contribuições, reduzir a burocracia, em especial para abertura e fechamento de empresas, o custo contábil empresarial e o tempo de compensação ou restituição de tributos. Durante 2013, a Secretaria da Micro e Pequena Empresa tentou implementar medida semelhante, que, porém, não chegou a ser concretizada.
Essas medidas podem reduzir o custo contábil e, assim, melhorar o fluxo de caixa das empresas, mas, sozinhas, não serão capazes de resolver os graves problemas de endividamento empresarial, queda de demanda e aumento de custos, sobretudo financeiros. Ademais, o movimento sindical deve estar atento para que estas medidas não se tornem o embrião de um “simples trabalhista”.
6. Melhorias de gestão
As medidas consistem na implementação do Sinter, um cadastro nacional de informações sobre imóveis, títulos e documentos compartilhados por diversos órgãos da administração pública. Esse cadastro visa reduzir o custo e assegurar maior segurança à obtenção de informações confiáveis sobre a propriedade de bens e imóveis, de forma a melhorar a recuperação de créditos, diminuir a sonegação e aumentar a arrecadação de tributos nesse setor, melhorando a eficiência tributária. Pode permitir maior segurança jurídica aos bancos na concessão de crédito lastreada na posse de propriedades, mas não afetará significativamente as decisões dos consumidores e clientes sobre a contratação de operações de créditos, pois essas são determinadas pelo nível da taxa de juros, pela renda disponível e pelas expectativas em relação à manutenção ou não do emprego.
7. Competitividade e comércio exterior
As medidas sobre competitividade e comércio exterior têm por objetivo agilizar os processos aduaneiros e reduzir em até 40% o tempo para procedimentos relacionados às exportações e importações de mercadorias, por meio da expansão do Portal Único do Comércio Exterior. Serão realizados aperfeiçoamentos e simplificações de processos, racionalização e melhoria na segurança (fiscalização agrícola, vigilância sanitária, segurança nacional) de modo a assegurar maior confiabilidade aos fluxos de informações que envolvem o comércio exterior.
As medidas são bem-vindas, mas têm caráter tímido e difuso e não contribuirão efetivamente para melhorar a competitividade do comércio exterior, pois não consideram as seguintes questões:
tendência cíclica e crônica de apreciação da taxa de câmbio e sua volatilidade
necessidade de aperfeiçoar o uso de instrumentos de defesa comercial, entre eles, salvaguardas e medidas compensatórias, licenças não automáticas, valoração aduaneira e medidas antidumping
redução das barreiras tarifárias e não tarifárias às exportações
fortalecimento da estrutura do departamento de defesa comercial do Ministério de desenvolvimento da Indústria e Comércio – MDIC;
retomada imediata do Reintegra (Regime Especial de Reintegração de valores tributários para empresas exportadoras), que, na prática, devolve ao exportador parte dos gastos que ele teve, via créditos do PIS e Cofins, com a elevação da atual alíquota de 0,1% para 3,0%, prevista somente para 2018.
Os desafios para o Brasil nesse segmento são enormes, tendo em vista que os resultados de exportações, em 2015, segundo a Organização Mundial do Comércio (OMC), foram dramáticos. A participação do Brasil no valor das exportações mundiais de bens decresceu de 1,3%, em 2013, para 1,2%, em 2014, ficando estável em 2015. Enquanto o Brasil figura entre as 10 maiores economias do planeta, o país é o 25º maior exportador e importador de bens, ou seja, é evidente a desproporção entre o tamanho da economia brasileira e o peso das exportações do país. A situação relativa do Brasil no comércio global é ainda mais dramática se for considerado o comércio de manufaturas. Em 2015, o Brasil era o 32º maior exportador mundial.
Portanto, as medidas ora propugnadas são insuficientes diante das necessidades do setor.
8. BNDES – Acesso ao crédito e renegociação de dívida
As medidas preveem:
Aumento nos limites de enquadramento das linhas de crédito para micro, pequenas e médias empresas, de R$ 90 para R$ 300 milhões
Aumento dos patamares para aplicação da TJLP para investimentos em capital fixo
Refinanciamento e aumento dos limites do Cartão BNDES e renegociação de dívidas
Manutenção, no ativo do banco, de R$ 100 bilhões que deveriam ser devolvidos ao Tesouro Nacional. Esses recursos não estavam sendo utilizados e agora serão destinados ao aumento das operações de crédito da instituição.
Tais medidas são importantes, mas sem a redução da Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP) e diante da recessão, as empresas dificilmente farão novos investimentos. Nesse momento, o foco das operações do banco deveria ser prover mais recursos para o capital de giro, pois as empresas estão com graves problemas de liquidez.
Se o Programa de Recuperação Tributária (PRT) obtiver algum êxito, poderá permitir que as empresas, ora sem acesso aos créditos oficiais, como os do BNDES, possam pleiteá-los.
9. FGTS
9.1 – Reduções gradual da multa adicional de 10%
A multa adicional de 10% sobre os saques do FGTS para os trabalhadores que foram demitidos sem justa causa tem origem no ressarcimento dos prejuízos que os detentores das contas vinculadas (trabalhadores formais) incorreram quando, nos Planos Collor e Verão, os saldos dessas contas foram remunerados com valores inferiores aos devidos.
Por decisão judicial, a Caixa foi obrigada a corrigir esses valores, o que provocou desequilíbrio no orçamento do Fundo. Para cobrir o rombo daí originado, criou- se o acréscimo de 10% sobre os 40% já existentes. Assim, o empregador teria que depositar 50% de multa sobre o saldo do FGTS quando rescindisse o contrato de trabalho sem justa causa.
Mais tarde, passado o episódio e com as contas já devidamente atualizadas e corrigidas, por pressão das entidades empresariais, foi votado um Projeto de Lei que eliminava o adicional da multa, retornando-a para os 40%. Aprovado na Câmara, foi vetado pela ex-presidenta Dilma Rousseff, que alegou que aqueles recursos eram imprescindíveis para que o Fundo continuasse provendo recursos para investimentos de utilidade pública, como saneamento, infraestrutura urbana e casa própria.
Também houve pressões do movimento sindical para que fosse mantido o percentual da multa em 50%, uma vez que ele tornaria mais cara a dispensa de empregados e, com isso, os empregos seriam preservados e a rotatividade da mão de obra no mercado de trabalho, reduzida.
Embora distribuída em 10 anos (1 ponto percentual ao ano), a supressão dos 10% adicionais da multa reduzirá o custo da demissão, trazendo maior instabilidade para o trabalhador e, na medida em que facilita a rotatividade da mão de obra, precariza ainda mais o mercado de trabalho. De outro lado, com o fim dos 10% adicionais, menos recursos estarão disponíveis para o financiamento das obras de utilidade pública.
Não foi possível identificar nenhum alívio que tal medida pode trazer ao mercado de trabalho no sentido de mitigar o desemprego, que continua crescendo devido à queda dos investimentos, decorrentes de altas taxas de juros e de um ambiente de negócios extremamente deteriorado.
9.2 Distribuição do resultado do FGTS para os trabalhadores
Será uma espécie de PLR (Participação dos Lucros e Resultados), com a distribuição aos cotistas de 50% do resultado líquido do Fundo, que será incorporado ao saldo existente. Argumenta-se que essa distribuição “não altera a disponibilidade de recursos dos programas de desenvolvimento urbano (habitação, saneamento e mobilidade urbana) ”.
Essa medida é bem-vinda, uma vez que procura atender a uma antiga e justa reivindicação dos trabalhadores, que é aproximar os rendimentos das contas vinculadas aos da poupança. Entretanto, tal medida está sendo proposta em momento em que ocorrem aumentos dos saques e redução dos depósitos, devido ao desemprego e à diminuição dos salários, e pode ter como consequência pouco resultado líquido para distribuir.
10. Microcrédito produtivo
A medida consiste em ampliar o Programa Nacional de Microcrédito Produtivo Orientado (PNMPO), instituído em 2005, que buscava incentivar a geração de trabalho e renda entre os microempreendedores. Em agosto de 2011, o governo lançou o Programa Crescer, para dobrar o acesso ao PNMPO.
O governo pretende ampliar a concessão de crédito para o microempreendedor individual ou microempresa, até agora limitado a R$ 60 mil por ano para o microempreendedor individual (MEI) e R$ 120 mil por ano para a microempresa. O novo critério adotado estende a concessão de crédito para empreendedores com faturamento até R$ 200 mil por ano, não especificando se o MEI está contemplado. O endividamento total, que não poderia exceder o valor de R$ 40 mil, agora passa a ser de R$ 87 mil.
Dados do PNMPO divulgados pelo Ministério do Trabalho demostram que houve aumento significativo no número de clientes atendidos pelo Programa (de 1,4 milhão, em 2008, para 5,5 milhões em 2014), assim como o número de operações de microcrédito realizadas, que saíram do montante de R$ 1,8 bilhão para R$ 11 bilhões. Mesmo com o incremento significativo nos últimos anos, o que pode ter alguma melhora social em algumas regiões, a economia brasileira apresenta desaceleração desde 2010, o que demostra pouco impacto dessa modalidade de crédito para estimular o crescimento econômico.
Fonte: Terra sem Males