Democracia em construção: o Brasil que nós queremos

Democracia em construção: o Brasil que nós queremos


Em março de 1985 foi instituído o fim da Ditadura Militar no Brasil. Depois de 20 anos de um período de incoerências, violência, censura, inflação descontrolada, nacionalismo extremo e crimes velados, o país se viu diante de uma situação insustentável. Brasileiros e brasileiras tomaram as ruas de todo o país e exigiram que as eleições dos governantes do país, que naquela época era majoritariamente feita por homens, fossem realizadas pelo voto popular. Não foi simples. Muita gente não sabe até hoje do paradeiro de seus familiares que lutaram contra a repressão.

Em março de 2015 são celebrados/relembrados os 30 anos da democracia brasileira. Apesar de já ter passado por períodos democráticos em sua história, o país está atualmente no mais longo Estado Democrático. De acordo com o sociólogo e professor da rede estadual de ensino do Paraná, Maikon Ferreira, a população brasileira ainda está se adaptando a esse processo. “O Brasil caminha para se tornar uma democracia estável. Vivemos ao longo de nossa história curtos períodos de processos democráticos, como o período que se estendeu do segundo governo Vargas até o Golpe de 1964. Se compararmos com democracias europeias, por exemplo, 30 anos pode ser considerado um curto período de tempo. A população tem se acostumado às regras da democracia, mas esse processo, como de toda mudança social, é lento”, explica.

Esse processo de construção da democracia também inclui a construção social de que o povo faz parte das tomadas de decisões e, segundo o sociólogo, isso ainda não está totalmente consolidado no Brasil. “Norberto Bobbio, politólogo italiano, defendia que a pior democracia é preferível à melhor das ditaduras. Isso porque, ainda que as instituições em uma democracia não funcionem perfeitamente, o cidadão em uma democracia tem o direito, sempre, de participar. No caso brasileiro, a cultura democrática ainda não está plenamente consolidada no pensamento do cidadão”, declara. “A experiência democrática no país é muito recente. A formação social no Brasil ao longo dos séculos estabeleceu uma estrutura de valores que, do meu ponto de vista, configura-se em uma aversão aos direitos sociais e humanos. Isso faz parte, infelizmente, da nossa cultura, independentemente de classe social”, completa Ferreira.

O fato de o Brasil estar em processo de democratização aponta também para os resquícios do período militar que permanecem na sociedade. Para o sociólogo, isso deve continuar enquanto o cidadão não se acostumar com as instituições democráticas. “Resquícios da ditadura continuam e continuarão na sociedade enquanto o pensamento democrático não estiver plenamente enraizado na mente dos cidadãos, enquanto, por exemplo, defender a Constituição Federal, uma das mais avançadas em termos sociais no mundo, não seja significado de comunismo, esquerdismo, etc.”, explica. Ferreira afirma que as instituições não fogem daquilo que a própria sociedade é. “As instituições em uma democracia são reflexo da sociedade. Mas, sendo otimista, afirmo que a era em que vivemos, a destes 30 anos passados do fim da ditadura militar, é de consolidação democrática”.

Para o cientista político, Ricardo Costa de Oliveira, os resquícios da ditadura podem ser encontrados em culturas de violência dentro de formas de atuação em alguns grupos policiais. Para ele, é necessário cessar a morte entre jovens negros das periferias e desenvolver uma cultura de paz e cidadania no país. “A ditadura era uma cultura do autoritarismo, da brutalidade e da falta de eleições diretas. A ditadura foi derrotada nos movimentos como as ‘Diretas Já’ e na redemocratização entre 1984 e 1988, mas a ditadura deixou heranças em várias esferas da vida social, cultural e política no Brasil. A nossa sociedade foi uma sociedade escravista durante quase quatrocentos anos e com uma das piores concentrações de renda da história. A falta de cidadania, a falta de direitos humanos, sociais e políticos deve ser transformada por uma sociedade com mais direitos e melhores condições de vida para todos”, comenta. Ricardo destaca que os direitos precisam ser ampliados para que os avanços sejam garantidos. “A democracia é uma contínua construção de direitos e deveres da cidadania. Estamos avançando com a democracia e os direitos conquistados precisam ser mantidos e ampliados. Outra questão essencial da democracia é a melhoria na educação. O professor é um grande agente civilizatório e deve ser bem remunerado, com boas escolas e bons investimentos educacionais. A educação é o melhor investimento para o futuro do Brasil”.

Recentemente manifestações foram feitas por todo o Brasil pedindo o fim da corrupção, o impeachment de Dilma Rousseff e, em alguns grupos, a intervenção militar. Mas, de acordo com Ricardo, as divergências políticas devem ser resolvidas dentro da própria democracia. “Pedir golpe militar ou intervenção militar extralegal é crime. Os problemas e as divergências devem ser resolvidos dentro do debate democrático. As instituições e a Constituição devem ser sempre respeitadas. As regras do jogo eleitoral devem ser respeitadas. Quem ganha as eleições de forma legítima deve governar. Muitas vezes os interesses dos mais ricos e dos grupos empresariais poderosos, como alguns setores da mídia, procuram manipular e enganar as pessoas. Sempre precisamos reforçar a ideia de democracia e de participação cidadã”, explica.

Uma das pautas constantes dos movimentos sociais é o pedido de reforma política no Brasil. Ricardo alega que essa é uma necessidade para que sejam realizadas mudanças nas regras e nos investimentos eleitorais. “Os partidos políticos devem ser fortalecidos porque a democracia só existe através dos partidos. Outro tema fundamental é a questão do financiamento político e o financiamento eleitoral. Deve existir um limite ao financiamento privado das grandes empresas nas campanhas porque não é possível que poucas empresas monopolizem os investimentos eleitorais. Deve acontecer uma democratização do financiamento eleitoral de modo a permitir maior representatividade e pluralidade dos eleitos”, completa. Para fortalecer ainda mais o processo democrático, Ricardo destaca que é preciso abrir mais pluralidade na gestão política. “Precisamos eleger mais mulheres, mais trabalhadores, mais negros e termos mais presença de segmentos sociais marginalizados e excluídos no processo eleitoral. A democracia se fortalece com pluralidade, com as vozes da periferia e com os mais pobres participando”.

Educadores derrubam o “tratoraço” – Em fevereiro de 2015 a educação paranaense deu um exemplo claro de democracia no Estado. Milhares de educadores e educadoras tomaram as ruas de todo o Estado em uma greve histórica para exigir que o governo cumprisse com a pauta de reivindicações da categoria. O primeiro item dessa pauta foi que o governo retirasse o pacote de medidas que alteravam, entre outras coisas, o regime de previdência de todo o funcionalismo público. Os(as) deputados(as) estavam votando o pacote de medidas em regime de Comissão Geral, que era ainda utilizado apenas no Paraná, que fazia com que todos os projetos fossem aprovados em uma única discussão, sem passar pelas demais comissões da Assembleia Legislativa do Paraná. Com a pressão dos(as) educadores(as) e demais servidores(as) públicos(as) que participaram da grande mobilização no dia 12 de fevereiro de 2015, o regime de Comissão Geral chegou ao fim no dia 04 de março.

De acordo com o sociólogo, Maikon Ferreira, a Comissão Geral era um instrumento utilizado por governos que queriam aprovar projetos sem nenhum debate com a sociedade e, por isso, utilizavam esse instrumento de atropelo das análises de demais comissões da Alep. “A Comissão Geral era uma aberração para a democracia. Os governos mais antidemocráticos se utilizaram desse instrumento para tramitar projetos de seu interesse, atropelando o trâmite normal dos projetos entre as diferentes Comissões legislativas”, explica. No entanto, Maikon ressalta que a queda da Comissão Geral sozinha não é garantia de maior democracia na tramitação dos projetos. “A queda da Comissão ainda não garante mais espaço democrático no legislativo, pelo simples fato de que o governo que possui a maioria na casa, com mais ou menos tempo, aprovará seus projetos. O que muda é a possibilidade de maior tempo para discussão dos projetos, o que dá, também, mais tempo para mobilização da sociedade. Para que haja mais espaço democrático no legislativo, precisa necessariamente haver uma relação dialética entre a sociedade e os poderes políticos”, finaliza.

Comissão da Verdade – As Comissões da Verdade, (sejam elas estaduais ou nacional) desempenham um importante papel dentro da construção da democracia no Brasil. De acordo com o representante do Fórum Paranaense de Resgate da Verdade, Memória e Justiça, Edmilson Leite, as comissões cumprem o papel de resgatar a memória do tempo de ditadura no país. “Um dos papéis mais importantes que estas comissões cumpriram, entre tantos, foi o trabalho de aprofundamento das investigações que possibilita o estado brasileiro e também ao conjunto da sociedade a necessária revisão histórica de todas as violações de direitos humanos que aconteceram no período de ditadura”. Edmilson destaca que a memória do tempo da ditadura não pode ser esquecida. “Infelizmente a memória, e até a veracidade dos fatos, ficou comprometida uma vez que o processo de redemocratização de nosso país foi conduzido pelos agentes da ditadura que na definição da história oficial fizeram destes ‘os mocinhos’ e quem lutou pela democracia ‘os bandidos'”, explica.

As Comissões da Verdade trouxeram importantes contribuições para a maior transparência dos crimes de direitos humanos cometidos durante a repressão. “Esses relatórios trazem registros, seja na forma de depoimentos ou de documentos, que explicitam como que agentes públicos e privados, por meio de seus cargos e/ou posições sociais e econômicas, sob a desculpa de um regime de exceção, fizeram do estado um poderoso instrumento de perseguição, tortura e até morte por meio da criminalização, muitas vezes sem fundamentação legal, de quem simplesmente se contrapunha ao regime”, explica Edmilson. Ele completa dizendo que os relatórios permitem que a sociedade saiba que quem lutou contra a ditadura eram cidadãos e cidadãs que buscavam um país melhor. “Outro importante legado, talvez seja de caráter político, que é o de fazer a sociedade entender que quem sofreu com as violações de direitos não foram bandidos, baderneiros, terroristas ou algo do tipo, mas sim verdadeiros heróis e heroínas nacionais que lutaram com as possibilidades que tinham na defesa de um país democrático, livre de participação social, como estamos construindo hoje”, completa.

APP-Sindicato na ditadura – A APP sobreviveu ao período da ditadura militar. O nome “APP” -Associação dos Professores do Paraná- é um exemplo de luta, onde o sindicato estava ciente de que, no período da repressão, era proibida a existência de sindicatos, consideradas organizações clandestinas. “Se formos buscar na história da APP, a gente vai encontrar greves, paralisações e manifestações  que recebiam o nome de ‘Congresso’ e ‘Conferência’ para iludir a repressão”, conta Edmilson. Apenas mais tarde a APP incorporou o nome “APP-Sindicato”, após a nova Constituição já permitir a existências dessas entidades. O próprio evento truculento de 30 de agosto de 1988 foi um resquício ditadura militar, período esse que a APP enfrentou e sobreviveu.

“Somos uma das instituições que contribuiu para a organização do Fórum Paranaense de Resgate da Verdade, Memória e Justiça, fórum que realizou uma série de ações visando colocar nosso estado no mesmo patamar de organização nacional e uma das mais importantes destas ações foi a de dar sustentação a criação da Comissão Estadual da Verdade”, explica Edmilson. “A APP por meio de suas instâncias e meios de comunicação interna e externa se esforçou muito para dar visibilidade as investigações da comissão, como  também subsidiou a comissão com as informações que tem possibilitando canais de investigação a mesma e agora com a consolidação do relatório trabalharemos para que sejam responsabilizados aqueles que cometeram crimes no Paraná”, finaliza.

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