Noite de 23 de junho, Ritinha da Luz, 16 anos, solteira, prendas domésticas, ao sair do emprego, dirigiu-se à casa de sua irmã Julieta, residente atrás da Ponte Preta. Ia a atravessar a linha do trem, foi atacada por quatro ou cinco indivíduos, aos quais se reuniram mais dois. Então violada por um de cada vez e abandonada entre as moitas. Seu choro atraiu um guarda-civil que a conduziu até a delegacia.
[…]
Acabada a brincadeira, voltavam satisfeitos para casa quando foram presos e conduzidos à delegacia. Nelsinho não conhece a negrinha e está contrariado com o que fez, atribuindo sua atitude a pouca idade que tem. (TREVISAN, p. 57, 1965, grifos nossos).
Esses são alguns trechos de um clássico do contista Dalton Trevisan: O Vampiro de Curitiba. O conto em questão é o Debaixo da Ponte Preta, que narra uma das muitas experiências sexuais do protagonista Nelsinho, um predador de mulheres. Aqui ele é um adolescente ainda, mas já é possível vislumbrar a maneira com que verá as mulheres em sua vida: presas fáceis, objetos para suas “brincadeiras”, sempre em posições inferiores (prendas domésticas). Além disso, o conto também destaca o fato de a personagem abusada ser uma “negrinha qualquer”, deixando evidenciado o descaso para com as mulheres negras. O machismo apresentado no texto também é outro ponto importante pois, coloca a mulher sempre em posição de inferioridade e além disso, insinua que a vítima estaria gostando da situação ali vivenciada. […] “Ela não pediu dinheiro aos três soldados, tinha achado um deles muito simpático, de cabelo bem loiro”. (p.61). A narrativa feita em forma de depoimentos policiais traz recortes comportamentais e do episódio que fazem o leitor montar um quebra-cabeças polifônico, onde há sempre o predomínio da fala masculina, embora possamos ouvir também a voz feminina. O autor dá voz a todos em suas narrativas, fazendo com que o leitor ouça o contraditório e tire suas conclusões.
Trevisan é um exímio cronista de época e sempre procura apontar as hipocrisias e fraturas da sociedade burguesa, sobretudo da dita classe média, composta por cidadãos de bem, cristãos, brancos e amantíssimos pais de família. O episódio que ocorre debaixo da Ponte Preta é apenas uma amostra de como esses personagens masculinos relacionam-se com as femininas no universo trevisânico. Relacionamentos estes que pouco mudam com o passar das décadas.
Talvez você esteja se perguntando o que tem esse conto a ver com o Dia Internacional de Lembrança do Tráfico de Escravos e sua Abolição – 23 de agosto, que é o real motivo deste texto. Vamos então fazer as devidas amarras.
Essa data foi instituída pela Unesco em 1998 para conscientizar a humanidade sobre as crueldades decorrentes da escravidão e se deve a um episódio ocorrido em 1791 quando escravos de São Domingos revoltaram-se e desencadearam uma revolução que levou à Independência do Haiti. Ex-colônia francesa, localizado na América caribenha é a primeira república negra e também o país mais pobre das Américas. Tem uma população de aproximadamente 11 milhões de habitantes, onde mais de 60% vivem com menos de um dólar por dia. Em 2010 um terremoto praticamente devastou o país e fez com que milhares de haitianos imigrassem para os países próximos. Aqui no Brasil, atualmente, temos mais de 1,5 milhões de haitianos.
A grande maioria desses imigrantes está em empregos informais ou recebem bem menos que os demais trabalhadores assalariados, ao contrário de outros que para cá imigraram, como os sírios e agora, os ucranianos. Imigrantes haitianos, africanos e venezuelanos são vítimas de xenofobia e racismo aqui no Brasil, desmontando a imagem que tínhamos de um país acolhedor, conforme uma carta-denúncia feita pela ONU em abril deste ano e entregue ao governo federal (ainda sem resposta). Nela é denunciado que eles sofrem para obter vistos, são alvos constantes de discriminação racial sistêmica e encontram milhares de barreiras para terem acesso a serviços básicos como saúde, moradia e educação, devido ao seu status de imigrantes.
A ilusão de uma vida melhor acaba se desfazendo para essas pessoas que aqui buscaram refúgio pois, muitas acabam sendo também, junto com outros brasileiros e brasileiras, vítimas de tráfico humano, já que, em levantamento feito pela OMT (Organização Mundial do Trabalho), o Brasil aparece tanto como país de origem, como de trânsito e de destino do tráfico, que hoje é o 3º negócio ilícito mais rentável do mundo, perdendo apenas para as drogas e armamentos.
Tráfico este que pode ter diversas finalidades: prostituição, comércio de órgãos e exploração de trabalho escravo em fazendas, garimpos, fábricas de costura, construções. Via de regra, esses trabalhadores e trabalhadoras forçados são, em sua maioria negros ou pardos, independente da nacionalidade, o que já denota a inferioridade do povo negro para quem faz esse tipo de comércio.
O Brasil foi e continua sendo um país racista, embora nossa Constituição Cidadã fale, em seu artigo 5º, que todos somos iguais perante a lei e que o racismo é crime. Basta fazermos uma rápida pesquisa no Google para constatar que, mesmo a população negra sendo maioria (56,1% dos habitantes), é a que recebe o menor salário, a que menos tem acesso aos serviços básicos, é a que menos ocupa cargos de destaque. É também a que mais sofre com desemprego, com a fome e a que mais lota os presídios e mais morre de forma violenta.
Por isso, esse 23 de agosto deve ser sempre lembrado e analisado histórica e socialmente para repensarmos o sentido mais amplo de palavras como igualdade e liberdade. Pois, como cantou Elza Soares:
[…]
A carne mais barata do mercado é a carne negra
Só-só cego não vê
Que vai de graça pro presídio
E para debaixo do plástico
E vai de graça pro subemprego
E pros hospitais psiquiátricos.
(Composição de Seu Jorge, Marcelo Yuka e Ulisses Cappelette)
E a Ritinha da Luz, lá do começo, no auge dos seus 16 aninhos, além de ser carne nova, fresca, foi grátis.
*Cláudia Gruber, professora da rede estadual e Secretária Executiva de Comunicação da APP-Sindicato.