DALTON ETERNO: “A chuva engorda o barro e dá de beber aos mortos”, artigo de Cláudia Gruber

DALTON ETERNO: “A chuva engorda o barro e dá de beber aos mortos”, artigo de Cláudia Gruber


Depois da sua partida, naquela segunda-feira (09) chuvosa,  houve um vazio, um torpor. Olhando a estante, será que agora algo de inédito virá?  Novidades. Novas coletâneas. Reescrituras. Relançamentos. Afinal, a pena nunca parou. Desde Joaquim (1946), a produção literária de Dalton Trevisan foi constante e revista, reescrita de forma sistemática, há fartura literária o suficiente para mais 99 anos. Só depois disso, para vir a eternidade.

Foram mais de 50 livros publicados, o que torna difícil uma escolha para prestar uma justa homenagem ao nosso vampiro.  Nas antologias escolares, os contos Uma vela para Dario (1964) e O ciclista (1968) são duas constantes; livros há os icônicos como O Vampiro de Curitiba, A Polaquinha, Pico na Veia mas, sempre tem  aquele que nos chama a atenção por um motivo especial. Sou suspeita pois, pra mim, eu diria que todos têm motivos especiais. 

 Virgem louca, loucos beijos (1979) sempre me chamou a atenção por vários motivos: o título do livro e o conto que também leva o mesmo nome e sua capa com cinco corpos femininos nus. A bíblia sempre foi um dos livros prediletos de Dalton e esse título remete à parábola das dez virgens.  Conta o Evangelho de Mateus que  dez virgens estavam à espera do noivo, cinco eram insensatas e cinco prudentes. Para recebê-lo, as prudentes carregavam azeite para acender a lâmpada quando da sua chegada e as insensatas, não. À meia-noite, o noivo chegou, as prudentes acenderam suas lâmpadas e entraram para as bodas. Já as insensatas não conseguiram arrumar azeite e ficaram de fora. Ao baterem na porta, ele lhes disse: Em verdade vos digo, não vos conheço. Vigiai pois, porque não sabeis nem o dia nem a hora.” Ou seja, a parábola ensina que as pessoas devem estar preparadas e atentas para a segunda vinda de Cristo.  Já o conto…

No conto Virgem louca, loucos beijos, Mirinha, a suposta virgem louca, é uma personagem emblemática que tem na sua história de vida, todas as histórias já desenhadas pelo contista até então.  Temáticas universais são abordadas em sua trajetória: amor, ódio, ciúmes, violência,  dor, tristeza, traição, vícios. Há também um diferencial nesse texto, sua estrutura. É longo, são 49 páginas: um prenúncio de romance, com um começo adoravelmente clichê: Minha mulher não me compreende. Mais nada entre nós. Fez da minha vida um inferno. Só de pena dos filhos não me separo” (TREVISAN, 1979, p.11). Mirinha, ainda inexperiente nas coisas do coração, não resiste e cai na lábia do sedutor que a deflora num quartinho imundo de hotel. Depois disso, ele a procura somente para o sexo, já que a santíssima esposa não pode sequer desconfiar de tal traição.  

João é o típico macho alfa trevisânico da década de 1970, reunindo todas as características dos personagens masculinos, a começar pelo nome. Ele é sedutor, galanteador, infiel, chantagista, ciumento, abusivo e, sobretudo, agressivo. A relação de João e Mirinha é o  retrato fiel do ciclo de violência que acomete muitos relacionamentos. Mesmo Mirinha não tendo um envolvimento maior com ele, João sente-se dono da moça, sempre fazendo provocações, comentários agressivos, proibições (micro-violências) até que, uma noite, ele chega à violência física contra ela: “Grande olho fosforescente de cachorro louco. Espuma no dente de ouro. Uma pedra rola nos dentes. E tapa e soco e bofetão” (p.25).  Tal episódio de agressões ocorreu após uma viagem de Mirinha, pois João sentiu-se abandonado e traído por ela.   

Na sequência, veio a chamada fase da lua-de-mel, onde o agressor arrepende-se de seus atos e passa a fazer mil juras de amor, agrada sua vítima: “Bem cedinho traz pão e leite. Agora ele pede, antes ela fazia sem que pedisse” (p. 27). 

Apartamento montado, o relacionamento parece voltar à normalidade mas, a cada dia, Mirinha se desilude ainda mais com ele e a separação é inevitável.  Só que João ainda precisa ter o direito à última palavra, pois o personagem não se conforma em sair por baixo:

  •  Adeus, João.
  • Só te desejo a maior infelicidade do mundo.
  • Quero te ver a última das putas. (p.33)

Depois da separação, a vida de Mirinha vira do avesso,  ela não para de pensar na maldição lançada por João – só te desejo a maior infelicidade do mundo – e acaba sucumbindo ao vício: “ – Sinto que te perdi. Não para nenhum homem. teu amor é a capirinha” (p.38, grifos nossos).    Os dias e as noites tornam-se um tormento; o apartamento antes pago por João, é perdido, a família não a quer de volta pois é moça “desonrada”, resta-lhe então a prostituição como alternativa de vida para que ela faça jus ao título de “virgem louca”, seguindo a história padrão que os clientes querem ouvir de toda prostituta.  

Um novo ciclo inicia-se para ela e um novo relacionamento surge: “Não pode dizer não. Não  tem feio nem velho. No quarto não mais que dez minutos. Senão bato na porta. Quantos forem, dois, cinco, sete, deve ir com todos. Sempre bem-disposta” (p.47).  Jô, a cafetina, explora Mirinha em todos os aspectos e não lhe dá um minuto de trégua. Vê a moça como uma máquina de fazer dinheiro e não tem escrúpulos em se livrar de Mirinha quando ela  está “no fundo do poço” e já não serve mais para atender seus propósitos. Agora, totalmente sem perspectivas, ela consome-se de vez na bebida: “Lembra-se do pai sozinho na mesa do boteco. No que tanto pensa diante do seu copo? Sabe agora. Feito ela, não pensa em nada” (p. 53). 

Mirinha ensaia um retorno à família mas, o medo de que não a recebam de volta é assustador pois seu estado é lastimável: relaxada, inchada, imunda.  Insegura, vai numa tarde de junho perguntar à mãe se pode voltar, se ainda precisam de um tempo para perdoá-la. A única condição imposta pelos pais é que daquele momento em diante comece vida nova. A mãe diz que não quer ouvir uma palavra do que aconteceu no passado e há também dois gestos simbólicos da mãe nesse retorno: primeiro queima tudo o que Mirinha havia trazido com ela e “Pega a tesoura. Recolhe o cabelo comprido até a cintura. Corta rente à nuca” (p.59). 

O texto traz outros elementos estéticos e linguísticos peculiares ao autor, como seus famosos clichês ( dentinho de ouro, vestidinho vermelho, golinho de café preto,…); diálogos enganosos; inversões textuais e muitas, mas muitas frases densas de significado que, anos mais tarde, acabam no rol de seus microcontos. “Para ele, o rico pastelzinho, para ela o cheiro de fritura no cabelo” (p.17)

Em 2002, esta última frase tornou-se o microconto 82 do premiado livro Pico na Veia e revela, mais uma vez, as batalhas diárias de joões e marias dentro de um relacionamento abusivo, machista e autoritário.  Os que não conhecem a obra do autor, costumam taxá-lo de frio, insensível, machista, por retratar tais situações de maneira tão objetiva e direta e, às vezes, até engraçada. Porém, o que vemos aqui é alguém dando voz e rosto a pessoas que vivem diariamente em situações-limite e que são o tempo todo invisibilizadas pela sociedade. Mas, essa análise é muito mais longa e complexa do que este texto agora se propôs.

TREVISAN, Dalton. Virgem louca, loucos beijos. Rio de Janeiro: Record, 1979. 

Por Cláudia Gruber,  secretária executiva de Comunicação da APP-Sindicato, professora da rede estadual e mestra em Estudos Literários (UFPR) .

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