Como sair das bolhas?

Como sair das bolhas?

A pesquisadora Pollyana Ferrari fala sobre fakenews, o conceito de pós verdade e o papel da educação para construir ética, senso crítico e permitir leituras de mundo

Foto: Divulgação

O ano de 2016 trouxe um episódio de fôlego para a pesquisa de pós-doutorado de Pollyana Ferrari, jornalista e pesquisadora em mídias digitais. Donald Trump tinha acabado de chegar à presidência dos Estados Unidos, depois de uma campanha baseada em informações falsas a seu favor. “Naquele momento, quis entender como os grandes veículos enfrentariam as fakenews”, conta a pesquisadora que viajou para Portugal e percorreu redações do jornal português Público e do espanhol El País.

Mais tarde, o Dicionário Oxford elege o termo pós-verdade como a palavra do ano, por entender que seu uso cresceu no contexto das eleições americanas até se tornar um termo comum nas análises políticas. O verbete ganhou como significado: “relativo ou referente a circunstâncias nas quais os fatos objetivos são menos influentes na opinião pública do que as emoções e as crenças pessoais”.

“Foi aí que entendi que a pesquisa ia muito além do Jornalismo. Quando falamos de informação falsa, a notícia é apenas uma parte. Ela pode permear diferentes áreas, impactar a vida de pessoas comuns, destruir reputações”, avalia Ferrari.

É daí que nasce o livro “Como sair das Bolhas”, uma publicação em que a autora busca refletir sobre a necessidade de compreender o mundo em que vivemos, sobretudo na era digital, e combater as distorções, muitas vezes disfarçadas em notícias.

Em entrevista ao Carta Educação, a autora fala sobre os riscos das fakenews, sobre as alternativas de checagens para a sobrevivência do debate público em sociedades democráticas e o papel da educação como contraponto ético e crítico às inverdades. Confira!

Carta Educação: Há como mensurar o início das fakenews? Vivemos uma ascensão das notícias falsas?
Pollyana Ferrari: 
“As fakenews sempre existiram. No meu livro eu cito relatos e resumos de jornais fake desde Roma Antiga. Então não é que a gente não tinha, sempre tivemos a imprensa marrom, o próprio Cidadão Kane, de 1941, é um exemplo, bem como a Guerra dos Mundos, de Orson Welles. Não estamos diante de um fenômeno novo, que começa em 2016. O que temos de considerar é a questão da escala.

O que mudou é a questão da escala. Com as redes sociais, basicamente as temos há 14 anos, todo mundo ganhou voz, temos produção de conteúdo via celulares, blogs, influenciadores digitais. E, veja, eu não sou contra esse movimento, é positivo termos outras vozes para além da grande mídia. A questão é que nos grandes veículos há etapas de apuração de informação, um mínimo de checagem, independentemente da linha editorial que sigam. Não estou falando de viés político, mas de etapas de apuração. Com a pulverização, isso se perde. E, sim, estamos em um momento de ascensão das fakenews, o que é muito preocupante.

CE: Qual a relação entre fakenews e pós verdade?
PF: A pós verdade aponta para uma sociedade informacional que compartilha personas digitais, desejos que não tem lastro com o real. Vejo que às vezes as pessoas até têm dimensão de que determinada informação é falsa, mas como isso vai ao encontro do seu desejo, ela compartilha.

CE: Como isso ganha força e pode ser prejudicial no contexto digital da Internet e das redes sociais?
PF: Vamos imaginar duas situações. Um jovem, adaptado à presença nessas plataformas e que acredita mais nos seus amigos e na sua timeline do que nos veículos e até em seu professor. Agora, o idoso que, por sua vez, não está acostumado com a presença digital e que vinha de uma relação com a informação em que se preservava uma checagem mínima. Isso parece inofensivo, mas quando consideramos que só no Facebook há dois bilhões de pessoas, é preocupante. Isso sem contar os aplicativos de mensagens instantâneas, como o Whatsapp, um dos mais utilizados pelos brasileiros e um dos disseminadores de fakenews em potencial. O que estou querendo dizer é que, geralmente, o dedo é mais rápido que o cérebro, se compartilha muita coisa sem checar informação, sem questionar de onde vem a foto, o vídeo. É preciso ter senso crítico e questionar o que se recebe.

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CE: Quais são os riscos das fakenews?
PF: Em 2014, Fabiane de Jesus foi linchada no Guarujá, litoral de São Paulo, por ser acusada de praticar magia negra com crianças. A informação era falsa, era um boato de internet. Quando se dissemina uma inverdade, com o intuito de prejudicar alguém, se perde a dimensão desse impacto. Depois que se espalha, você pode até tirar a informação do ar, mas às vezes os casos são incontornáveis. Recentemente, tivemos o caso da vereadora Marielle. Quantas vezes foi preciso repetir que ela não era amante de um traficante para que essa informação voltasse para a memória das pessoas de novo? Porque aí a maldade se espalha, se comenta no ônibus, no bar e não se checa a retratação posterior. É preciso muito cuidado, uma informação mentirosa pode destruir a vida de alguém, uma reputação, acabar com uma empresa, uma escola, uma família.

CE: Quem são os maiores produtores de fakenews hoje?
PF: 
Temos escritórios e grupos que ganham dinheiro com as fakenews, mas eles representam 30% da veiculação de informações falsas. A maior parte vem das pessoas que propagam pequenas mentiras, embasadas em ódio por não pactuarem com determinada ideologia, ou conteúdos inaproriados que visam a perseguição de determinados grupos ou indivíduos, por exemplo, o vazamento de fotos por Bullying. Esse movimento é maior e assustador. E por quê eu digo isso? Porque uma vez localizado o escritório, por exemplo, é possível recorrer à Lei e punir por uma eventual injúria, calúnia ou difamação. Agora, o que fazer com quem compartilha pequenas ou grandes mentiras pelas redes e grupos? Quem começou a dizer que a Fabiane de Jesus era a mulher que fazia magia negra? Como saber de quem parte essa informação no Whatsapp? Ninguém foi preso  no caso porque não se sabe quem começou.

CE: Quais são os caminhos para barrar essas disseminações do ponto de vista legal?
PF: As agências de checagem têm atuado como um respiro mundial nesse universo. Os algoritmos de checagem são necessários, mas sempre serão insuficientes se não houver educação e mudança de comportamento. Quantas agências Lupa e Aos Fatos seriam necessárias para dar conta de uma eleição num país em que pelo menos 140 milhões de pessoas vão votar?

Outro ponto é em relação às plataformas de divulgação que também têm colocado seus algoritmos de checagem. Essas empresas são sim responsáveis por esse volume de dados, e precisam ter políticas claras de checagem. Isso, no entanto, é novo e está em construção no mundo. Temos visto esforços na Alemanha, na França, Argentina e aqui no Brasil também com discussões pelo Tribunal Superior Eleitoral e Senado. É um momento rico de discussão, da sociedade pressionar por políticas mais claras e também de termos cuidado com os contornos das leis, para que vire censura para tudo.

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CE: No livro você usa a expressão “bolha”. O que entende por isso e por que diz da necessidade de sair dela?
PF: Bolha são as redes sociais e proponho uma reflexão sobre a necessidade de sairmos desse espaço que te induz a compartilhar com os seus “iguais”. Sobretudo nesses tempos de polarização, temos cada vez mais excluído os que pensam diferente de nós, o que nos deixa em uma zona de conforto, mas também nos prova de uma leitura de contexto. E a gente não tem ideia do perigo disso. As pessoas acabam se refugiando naquilo que entendem ser igual a elas e com isso perdem embasamento e senso crítico para o debate. Precisamos transitar mais pelos grupos divergentes, ver mensagens de outros grupos, da grande mídia porque, ainda que manipulado, o discurso dá uma dimensão do que está acontecendo. Costumo dizer que até para criticar algo, precisamos conhecer, entrar em contato, senão só reproduzimos a opinião pasteurizada da bolha.

CE: Como o sair da bolha se relaciona com o enfrentamento às fakenews?
PF: Os algoritmos são softwares e ele fortalecem as bolhas. Se você fala de comida orgânica, só receberá anúncios e marcas desse tipo, aí entra no círculo. Os produtores de fakenews também compram perfis falsos para entrar nas bolhas e oferecer discursos sob medida. Os algoritmos seguem as nossas pegadas nessas redes para oferecer conteúdo. Então, se você é uma pessoa que transita, é possível confundi-los e isso é benéfico a partir do momento que você não fica na mão da plataforma, sai desse universo e consegue fazer outras leituras e estabelecer diálogos.

CE: Em que medida isso esbarra na educação?
PF: Dando o exemplo do jornalismo, tem muitos veículos que se recusam a olhar esse tempo dos algoritmos e aí ficam no seu quadrado e acabam perdendo relevância. É o mesmo para as escolas. A gente tem a questão das fakenews, das bolhas, do Bullying, de gênero, isso faz parte da vida dos jovens todos os dias. Escolher deixar isso de fora é perder a chance de ajudá-los a sair da bolha, a construir seu senso crítico e serem adultos mais críticos e éticos. Temos esse papel social enquanto educadores, não consigo ver a sala de aula sem essa função.

CE: E como vê esse papel social sobretudo em tempos de extrema polarização política em que professores são perseguidos e acusados de doutrinar seus estudantes?
PF: Estamos em um momento muito difícil para todo mundo que lida com público. Mas é preciso lembrar e ter o cuidado de que a checagem de fatos é apartidária, não tem linha religiosa, racial, de gênero, estamos falando de fatos. Você pode ter opinião diferente da minha, mas fatos a gente não discute. É um bom começo para conversar. É preciso começar a conversa com os estudantes pelos fatos  e deixar que as convicções sobre o assunto se construam a partir do senso crítico e da ética. Assim não damos lugar às fakenews. E isso vale para todos, não só para as escolas, mas familiares e pessoas que convivem com os jovens. Ou a gente entende que somos 7 bilhões e o que fazemos nas redes atinge todo mundo, já que estamos globalizados, ou ficaremos cada vez mais escondidos em nossas bolhas.

Fonte: Carta Educação

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