Circuito Infernal | Reflexões para o Dia do Professor e da Professora

Circuito Infernal | Reflexões para o Dia do Professor e da Professora

Artigo de Cláudia Gruber e sua percepção literária e de experiências nas escolas públicas do Paraná

Arte: Divulgação APP-Sindicato

Há certos textos que muitos de nós, professores e professoras, já nos deparamos alguma vez com eles na escola. O impacto que alguns desses textos nos causam é tão grande que ficamos presos somente neles. Sem saber mais acerca de quem os escreveu ou quando os escreveu, qual era o contexto em que as obras nasceram.   

Circuito Fechado é um desses textos. Vamos relembrar brevemente seu início: Chinelos, vaso, descarga. Pia, sabonete. Água. Escova, creme dental, água, espuma, creme de barbear, pincel, espuma, gilete, água, cortina, sabonete, água fria, água quente, toalha. Creme para cabelo, pente. […]

Escrito em 1972, por Ricardo Ramos, este conto faz parte do  livro homônimo do autor. Para quem não conhece Ricardo Ramos, ele era  formado em Direito, mas foi um homem da propaganda, professor de comunicação, jornalista e escritor em São Paulo. 

Ricardo nasceu em 1929, na cidade de Palmeira dos Índios (AL), enquanto seu pai era prefeito. Ricardo era filho de Graciliano Ramos. Talvez daí se explique um pouquinho sua paixão pela literatura. O escritor faleceu em 20 de março de 1992, em São Paulo, deixando uma extensa obra literária: contos, romances e novelas, dando representatividade à prosa contemporânea em nossa literatura.

Mas, voltemos ao conto. O texto, construído todo com substantivos, leva o leitor ao cotidiano miúdo de um homem preso em uma rotina enfadonha que, aparentemente, o consome durante o seu dia e não revela nenhum tipo de alegria ou satisfação naquilo que faz. Por determinados objetos, é possível traçar um perfil desse homem, onde vive, onde trabalha, sua posição social, seus vícios e, pela data em que o texto foi escrito, até mesmo a conjuntura da época. 

Para  tal análise tornar-se mais consistente, é necessária uma introdução a um universo literário específico, o do conto. Alfredo Bosi faz isso com maestria na antologia O conto brasileiro contemporâneo, obra escrita em 1975. Ali, o crítico literário mesmo selecionou os textos e  fez uma análise de cada conto da coletânea. Na introdução, há um ensaio onde o autor realiza um recorte temporal para situar o leitor no universo dos contos escolhidos e um segundo movimento ao apresentar para o leitor uma metodologia específica de leitura do gênero conto, que parte do texto em si e vai se desdobrando para o geral e para o contextual e até mesmo para o processo de criação da obra. 

Você deve estar se perguntando por que estamos falando desta antologia. Foi aqui que Circuito Fechado popularizou-se e ganhou o mundo. Ao analisar este conto em especial, diz o crítico que o mesmo reflete uma sociedade de consumo e hábitos compulsivos dum personagem fechado num circuito que o aprisiona em um mundo sem grades mas, que o prende mesmo assim. 

Quanto à criação literária em si, vemos em Ricardo uma busca para fugir da sombra paterna, adotando um estilo único e peculiar, sempre se reinventando, mas ainda assim mantém a mesma concisão e a secura textual de Graciliano Ramos.

Porém, essa introdução já ficou longa demais pois, o objetivo primeiro deste texto era apenas usar a referência do Circuito Fechado para apresentar um dia na vida dos nossos professores e não fazer praticamente uma resenha da obra. Mas, a literatura é tão viciante e necessária que acaba causando esses deslumbramentos e desdobramentos. 

E você? Como seria a sua versão professoral do Circuito Fechado? Talvez algo mais ou menos assim? 

Despertador. Vaso, descarga, chuveiro. Sabonete, xampu. Toalha. Sutiã, calcinha, calça, camiseta, meia, tênis. Café. Remédio. (Gato, cachorro, ração.) Livros, bolsas, chaves. Ônibus. Escola. Jaleco. Registro Ponto. Sala. Alunos. Educatron. Plataformas. Sala. Sala. Recreio. Café. Planilhas. Notas. Sala. Alunos. Plataformas. Almoço. Marmita. Remédios. Ônibus. Sala. Alunos. Gritos. Plataformas. Sala. Alunos. Gritos. Plataformas. Sala. Alunos. Gritos. Plataformas. Sinal. Ônibus. Casa.[…] Silêncio. 

Infelizmente, nosso cotidiano, assim como o do personagem, também se tornou uma cadeia sem grades. Somos monitorados e vigiados a todo instante nas escolas. Há milhares de tarefas extras a serem cumpridas, há as metas nas plataformas, há as recuperações das recuperações para que sejam aprovados alunos sem pré-requisitos básicos para a série seguinte, pois a escola precisa de números, de índices de desempenho e aprovações. Sabe como é: o Ideb, a melhor educação do Brasil…Estamos aprisionados num circuito infernal que nos desgasta e nos consome de tal maneira que no final do dia, só queremos um pouco de paz e silêncio, nem que seja por alguns míseros segundos. 

Diante deste cenário, fica difícil exaltar ou comemorar o 15 de outubro, pois os desafios e obstáculos são enormes para que tenhamos nosso trabalho valorizado e reconhecido pela sociedade e pelos governos. Se é que um dia houve tal reconhecimento. Até surgiram alguns comentários e aplausos lá na época da pandemia. Mas, aqui é outra história. 

Felizmente, professor e professora são seres teimosos, que ainda insistem e resistem pois acreditam na mudança e sempre “esperançam”, mesmo diante do circuito alucinado em que vivemos.       

*Por Cláudia Gruber, professora e secretária executiva de Comunicação da APP-Sindicato.

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