Houve época, na Antiguidade, em que uma linhagem de rainhas guerreiras do Reino de Kush exerceu grande poder político e social. Lutavam por seu território no Vale do Nilo (região correspondente hoje à Etiópia), seus filhos e sua cultura. Gregos e romanos denominaram essas soberanas negras de Candaces, rainhas-mãe.
A força dessas mulheres inspira até hoje muitas outras, parte delas descendentes arrancadas de sua terra e jogadas em outros continentes durante a escravidão. O ímpeto dessas guerreiras ancestrais inspirou uma pequena confecção paulistana, cuja produção artesanal transcende o caráter comercial para se tornar uma causa.
A Candaces nasce numa família formada por mãe, Ana Neves, e três filhas, todas envolvidas na criação e execução de roupas étnicas feitas com tecidos africanos e com um objetivo especial, alavancar a autoestima das clientes. Tudo começou de modo fortuito em 2013, conta a filha Sandra.
Para ajudar a mãe, que sem emprego fazia bolsas de caixas de leite e pufes de pneus para vender, comprou alguns pares de brincos de temática afro para ser comercializados num evento de moda em Jundiaí, São Paulo. Ocorre que as roupas coloridas das vendedoras chamaram mais atenção que os produtos à venda. Estava plantada a semente do projeto de criar a própria marca.
No início, como Ana costurava apenas para a família, a prática foi customizar roupas prontas. Pelas mãos criativas da família, uma saia virava vestido ou macacão. Um vestido se transformava em short, e assim por diante. Tudo lindamente colorido, sempre no tema afro, com estampas étnicas. “Daniela, minha irmã mais velha, pintava as peças. Na segunda ou terceira participação em feiras decidimos fabricar”, conta Sandra.
Aqui entra em cena a controversa questão de apropriação cultural. Para Daniela, isso ocorre quando a mesma roupa usada por uma mulher branca é menosprezada no corpo da mulher negra. “Há algum tempo, quando uma negra usava turbante, esse acessório não era visto como algo bonito, estético, mas associado a práticas como macumba, magia negra. Não se pensava que fosse uma vestimenta de um rei, uma rainha, da cultura de um povo.” Os tecidos dignos de rainhas vêm de Gana, Senegal e Angola. São peças de algodão de alta qualidade, com cores resistentes à lavagem. O biótipo nacional determinou adequações. “Procuramos adaptar a modelagem ao estilo brasileiro. As peças femininas são mais decotadas e mais largas no quadril. As camisas masculinas são maiores, pois os africanos são mais longilíneos”, explica Sandra. A beleza da estamparia, a variedade de modelos e a alegria das cores fortes atraem o público feminino como um todo, brancas incluídas.
Até recentemente, muitos negros tinham vergonha da própria cultura, frisa Sandra. Esse cenário vem mudando e o surgimento de diversas marcas de roupas afro mostra o avanço desse processo de autoafirmação. “Toda a história de sofrimento dos negros justifica o uso desses instrumentos para a elevação da autoestima.”
Muitas mulheres ainda se intimidam diante de um turbante, ficam inseguras, não querem olhar no espelho. Para as que estão em processo de transição de parar de alisar o cabelo e assumir a cabeleira afro, o turbante torna-se ferramenta importante. “Tem cliente que chora de emoção ao usar, nos conta que nunca se havia imaginado com esse acessório. Em nossa página no Facebook, são diversos os depoimentos de agradecimento.”
A produção da Candaces é totalmente caseira e deve continuar desse modo. “Nós nos achamos no que fazemos e a ideia é não crescer demais para não perder a essência de nosso trabalho artesanal. Não queremos nos industrializar”, afirma Sandra. Tudo acontece na casa-ateliê situada na zona leste, repleta de referências africanas e amostras de tecido colorido. Filha e mãe criam os moldes.
“Ela nunca tinha feito nada de vestuário até fazer a primeira peça”, conta Sandra a respeito da matriarca, militante pela urbanização das favelas, educação de jovens e adultos e presidente da Associação dos Afro Empreendedores. Das tesouras brotam calça, macacão, saia, vestido, cropped, blusinha. Camisa e bata masculinas. Os tecidos são únicos, as estampas não se repetem e a numeração vai do PP ao XG.
Da mala onde estão as peças prontas para a venda, Sandra exibe alguns modelos batizados em homenagem a amigas divulgadoras da Candaces. Tem o vestido Adriana Moreira, em referência à cantora paulistana, e o Preta Rara, criado para a rapper santista. Algumas estampas também têm nome e Miriam Makeba, a cantora e ativista sul-africana, é uma das mais solicitadas.
Fonte: Carta Capital / Ana Ferraz / Fotos Harnebach