Alunos da rede pública paranaense são considerados consumidores de tecnologias, não seres humanos em formação, aponta William Cazavechia

Alunos da rede pública paranaense são considerados consumidores de tecnologias, não seres humanos em formação, aponta William Cazavechia

Autor do livro “A Educação na Sociedade do Espetáculo” participou da Escola de Formação 2024

Professor da rede pública estadual paranaense e doutor em Educação pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), William Cazavechia tem seu livro “A Educação na Sociedade Espetáculo” indicado como referência teórica no jornal Edição Pedagógica de 2024.

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O livro analisa o pensamento de Guy Debord (1931-1994), especialmente sua concepção de “sociedade do espetáculo”, relacionando educação e processo de desumanização na contemporaneidade capitalista.

Foto: Bruna Durigan/ APP-Sindicato

“Marx já sinalizava que saltamos do ser para o ter. Guy Debord, numa releitura de Marx, vai sugerir que a gente deixou de ter para aparecer. Vivemos numa sociedade em que os discursos se desconectam da realidade, o que cria muita confusão”, diz Cazavechia.

O autor observa que hoje os alunos da rede pública são considerados consumidores de tecnologias, não seres humanos em formação. “Essa é a educação na sociedade do espetáculo, voltada para as aparências e não para a realidade da apropriação do conhecimento historicamente construído”, afirma.

Cazavechia foi convidado a apresentar o livro na Escola de Formação 2024, quando falou mais detalhadamente sobre a obra em entrevista à APP. Confira a conversa a seguir.

Como nossa percepção da realidade é prejudicada por essa sociedade espetacularizada que você descreve?

Somos afetados por uma sociedade que é orientada pela imagem e não nos permite pensar, que não nos permite refletir sobre o que fazemos e que nos operacionaliza, nos transforma em mão de obra barata dentro da escola. A minha pesquisa é voltada para entender a nossa vida, não só a educação dentro da escola, e começa com a inquietação de compreender o que nos forjou como pessoas hoje submetidas a esse regime da imagem, que a gente aceitou tão facilmente, essa digitalização do mundo, essa computadorização dos processos. A gente mudou nosso jeito de pensar. Nós procurávamos as causas dos fenômenos, hoje vivemos em um eterno presente de normalização de todos os fenômenos.

Como o espetáculo dominou a cena na educação?

Nós somos seres que nos formamos ao longo do tempo, não existe uma natureza humana que nos define, você não nasce pronto. Você é o resultado do processo educativo que você viveu na sua vida, seja no regime formal ou no dia a dia, você está sendo formado, pelo trabalho, pela sua vivência cultural e por sua escola, sua universidade. Esse processo foi dominado pelo espetáculo, que significa uma relação social mediada por imagem. O que nós conseguimos demonstrar no livro é como isso funciona agora.

Como funciona?

O que é uma mediação social orientada pela imagem? É uma relação social em que não existe comunicação, estamos impedidos de nos comunicar, ninguém ouve ninguém, todo mundo só aparece o tempo todo, o objetivo é aparecer, não é compreender, não é se comunicar…

Que pressupõe escutar também…

Isso. Pressupõe a escuta. Se não há escuta, não é comunicação. Vivemos a sociedade do mar de informações e a gente sofre com isso porque é incapaz de processar tanta informação. Então a gente não tem escuta, a gente tem muita fala, todo mundo quer falar, só que a gente não tem tempo de ouvir o que está acontecendo à nossa volta. Isso se deve justamente a essa transformação dessas relações sociais em imagem. Essa mediação da imagem é consumo um do outro. A gente não se conversa mais, a gente se consome, a gente consome a imagem um do outro. 

Como as ideias de Debord se aplicam à plataformização da educação paranaense?

Para Guy Debord os meios de comunicação são uma face do espetáculo. O espetáculo em si é a mediação de um grupo que orienta a economia separado da sociedade. O que é a plataformização se não o interesse de um grupo econômico em veicular essa tecnologia de modo que eles se favoreçam financeiramente?

McLuhan disse que o meio é a mensagem. A plataformização é a mensagem?

A plataformização é a mensagem. É a mensagem da alienação, da desumanização e da desapropriação dos sentidos. O que McLuhan falava, em meados do século 20, foi muito interessante para a época. McLuhan e Debord estão em lados opostos do espectro político. 

O uso inadequado da tecnologia favorece o sequestro dos sentidos?

Com certeza. Essa é a tese do livro e a minha interpretação da obra do Debord. Marx tem uma frase muito significativa: a história humana até hoje é a formação dos cinco sentidos. Para Marx há um processo de formação cognitiva e perceptiva da realidade. Não existe consciência só cognitiva. Essa habilidade perceptiva tem a ver com a práxis, com o seu quotidiano, com o seu corpo.

Quais as consequências desse sequestro?

A nossa imaginação está sequestrada, então somos incapazes de perceber que um outro mundo é possível, que uma outra educação é possível, não por nossa incapacidade, mas por causa da habilidade do sistema de se apropriar de todo nosso processo imaginativo-criativo. Essa é a fonte de recursos inesgotável que o capital encontrou para explorar abusivamente. Isso tem definido nosso processo de ensino-aprendizagem, nossa relação de trabalho, nossa posição no mundo e a finalidade para que atuamos na vida. A gente atua na vida para se aperfeiçoar como mercadoria, como coisas.

E ter valor no mercado, poder se empregar…

Isso. A educação na sociedade do espetáculo quer dizer a educação por um processo desumanizador.  Acredito muito numa frase que é: mais que interpretar o mundo temos que transformá-lo. Só que para transformar a gente tem que interpretar. O livro é parte dessa interpretação do que está acontecendo.

Como a educação pode ajudar a virar esse jogo que parece ter cartas marcadas? 

É possível virar o jogo, na medida em que a gente reconheça os vários mecanismos que essa sociedade tem utilizado. Ouvi muito aqui colegas dizendo a gente precisa parar para se comunicar de novo. É esse o caminho: ou a gente dá esse freio, observa, vê o que está acontecendo, para seguir adiante; ou a gente está no campo do inimigo e se eles deram as cartas do jogo, já perdemos.

É preciso desapropriar a tecnologia. Fazer a tecnologia ser nossa. Parar de dar a ela aquilo que ela não é, de oferecer a ela um poder que ela não tem. Ela não tem capacidade educativa. A gente conquista isso mostrando para os alunos e professores que somos nós os donos da educação, porque nós somos seres vivos em processo de transformação e mudança.

Você menciona a “doença da normalidade”. Como ela se manifesta na sociedade do espetáculo?

O pessoal da filosofia contemporânea tem usado o termo normose. O neoliberalismo traz consigo a ideia de presentificação constante. A gente vive dentro de uma trincheira. Esse horizonte de expectativas reduzido faz com que a gente viva num presente eterno, em que tudo está acontecendo simultaneamente e aleatoriamente. A gente tem essa sensação de que não existe história, de que não existe passagem do tempo…

E de que não há futuro também…

Exato. Nossa construção como seres humanos depende da nossa consciência histórica, ou a gente tem, ou a gente vive numa normose, achando que tudo é normal e o leite surge do nada dentro da caixinha.

Isso leva a uma debilidade espiritual e social?

Estamos falando de uma sociedade doente. O que a gente espera dos alunos? Eu particularmente não gosto de alunos muito obedientes. Não é pela obediência que estamos lutando, mas pela formação de um ser humano completo e integral. Um ser humano capaz de perceber o mundo à sua volta, de criar o mundo e recriá-lo se for preciso, que se aproprie dos conhecimentos já elaborados. Se você pensa em termos de normalidade, esse adolescente olha para o mundo e diz: quero ganhar dinheiro, não quero mais nada da vida.

Outra educação é possível? É possível ser otimista nesse contexto?

Eu acredito muito que outra educação é possível, porque nós somos seres inquietos. Eu jamais vou me submeter a uma ordem imposta. Ditadura nunca mais. Nós estamos em movimento e é isso que importa. Está difícil hoje? Está. Não tá fácil para ninguém, mas a questão é: foi fácil algum dia? E outra: diante da dificuldade vamos dizer que está tudo bem? Vamos para normose? Não dá. Vamos lutar onde dá.

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