A partir da colonização, e mais tarde com a vinda da família real para o Brasil em 1808, o país passou a ter a documentação escrita de “parte” de sua história cultural, social e econômica e analisando a dita “nova” sociedade brasileira, pós-descobrimento, foi possível comprovar, com mais nitidez, a despreocupação histórica pela educação escolar.
Inicialmente, foi a catequização indígena a forma mais imediata de “processo educacional” no Brasil colônia. Não considerados seres humanos, e, portanto, não detentores de almas para serem salvas, foram, num primeiro momento dizimados em grande escala.
Mais tarde, com a fixação das primeiras companhias jesuítas, a preocupação passou a ser a catequização dos, então, “selvagens”. Escritos e documentos da época relatam os métodos utilizados para a conversão do índio brasileiro, que iam da persuasão pelo discurso do medo, como os dogmas de inferno, pecado e purgatório, à imposição de castigos físicos.
Outra estratégia utilizada pelas companhias foi a evangelização das crianças indígenas. Estas eram afastadas da família e da comunidade originárias, pois o entendimento da igreja era de que os “maus” costumes seriam abolidos através da segregação e pelo esquecimento.
Percebe-se que não havia um projeto educacional “intelectualizado”, que já florescia na Europa da época, mas de dominação e de imposição aos nativos da cultura religiosa e das tradições europeias, tanto assim que existia a proibição, pelo papado, de constarem oficialmente nos quadros da igreja e de comporem escolas religiosas, os mulatos, resultado da mistura de europeus e africanos, os cafuzos, resultado da união entre negro e índio e os mamelucos, mestiços de branco e índio, ou seja, o autêntico brasileiro.
Por outro lado, o Brasil foi uma grande colônia escravagista.
“Os negros que sobreviviam às péssimas condições da viagem,
desembarcavam e aqui eram vendidos como “peças” de mão-de-obra para os setores econômicos dominantes,
lavoura e depois a mineração”.
Esta população escrava não tinha acesso à educação escolar. As crianças negras, até por volta dos sete anos, participavam da vida social na “Casa Grande”, brincando e recebendo mimos. Após esta idade passavam a ser utilizadas no trabalho escravo ou quando inservíveis, vendidas ou mesmo trocadas por animais, pois passavam a ser consideradas “estorvos” na medida em que não produziam ou trabalhavam, mas a elas tinha que se dispensar alimentação. Essas crianças cresceram distantes da educação das “letras e dos números”, como se dizia.
No ápice da pirâmide social brasileira, estavam, principalmente, os portugueses colonizadores, seus descendentes e as novas famílias que tiveram ascensão social. Mas estas, que tinham ou deveriam ter acesso à educação institucionalizada, também não lhe davam a devida importância.
Em muitas famílias abastadas que viviam no Brasil, a educação de seus jovens ia até dominarem as “letras” e os “números”. Não havia a continuidade dos estudos, nem a preocupação de formação universitária, o que irá surgir somente alguns séculos mais tarde e assim mesmo restrita a poucos. Isto ocorreu em grande parte pela forma de organização econômica vigente no Brasil, de então.
Enquanto na Europa vivia-se um período de renascimento econômico-cultural, o Brasil colônia ainda estava imerso em sua forma escravagista de produção agrária e de mineração.
“A herança pela não educação e pela secundariedade no ensino escolar vai transcorrer séculos,
perdurando na organização social até os dias atuais”.
A crença social de que a “criança deve trabalhar desde cedo para não se tornar bandida”, vai ao encontro da concepção de que a educação escolar, em nosso país, é socialmente compreendida como algo acessório e secundário na formação de um cidadão e no desenvolvimento econômico do país.
A desatenção com o processo educacional ao longo da história da consolidação da sociedade brasileira trouxe, e ainda traz, problemas nos diversos segmentos sociais. Construções mal calculadas, produções legislativas inócuas, administrações públicas caóticas, retrocessos de direitos fundamentais conquistados, aumento da criminalidade e até perda de investimentos estrangeiros, são exemplos dos efeitos colaterais do subdesenvolvimento educacional brasileiro.
Em recente estudo realizado pelo Fórum Econômico Mundial, sobre o “êxito dos países em preparar sua gente para criar valor econômico”, o Brasil apresentou a 83ª colocação na qualidade da educação, dentre 130 países analisados.
Tendo ficado em último lugar entre países da América Latina, atrás de países como Bolívia, Paraguai, Uruguai e Argentina, o Brasil possui 35% de seu capital humano subdesenvolvido.
Para o Fórum Mundial, o sucesso econômico em longo prazo de um país passa, necessariamente, pelo seu capital humano de qualidade. Analisando o desenvolvimento econômico e a qualidade de vida dos países com melhores índices de capital humano (Finlândia, Noruega, Suíça, Japão e Suécia) é de se concluir que a educação escolar de qualidade é a base para o desenvolvimento social e econômico. Nestes países há baixíssimos índices de violência e criminalidade, desemprego e pobreza.
Não há como se conceber um país economicamente forte e solidificado a longo prazo, desrespeitando-se o direito fundamental ao acesso ao ensino e à educação. A dignidade da pessoa humana, emanada do artigo 1º., inciso III, da Constituição Federal, passa pela educação; não é possível efetivar-se a prioridade absoluta do artigo 1º do ECA, sem se assegurar um processo educacional de qualidade; o Princípio do Superior Interesse, consagrado na Convenção Internacional dos Direitos Criança, passa, necessariamente pela educação.
Por esse motivo, qualquer modificação ou atualização do processo político-pedagógico deveria ser visto, por um governo, sob o enfoque de que a criança ou adolescente, estudante, é verdadeiro sujeito de direitos. Somente poderá ser legalmente válida, por exemplo, a modificação ou reforma de ensino que efetivamente consagrar com absoluta prioridade a qualidade da educação escolar e o seu respectivo acesso, como forma de efetivação dos princípios da proteção integral e do superior interesse destes sujeitos de direito.
Não priorizar, portanto, a construção de escolas, de centros de educação infantis e de pré-escolas, a contratação de professores e disponibilização de vagas escolares ou pré-escolares violam integralmente os direitos fundamentais à educação e à dignidade da pessoa humana, especialmente quando o artigo 4º, parágrafo único, alíneas c e d do Estatuto da Criança e do Adolescente prioriza a formulação e a execução de políticas públicas e a destinação de recursos públicos na área da infância e adolescência.
Ignorar, ainda, dados internacionais sobre a má qualidade da educação escolar de nossos jovens, como no já mencionado estudo do Fórum Econômico Mundial que contabiliza 35% do capital humano brasileiro como subdesenvolvido e a 114ª colocação no ranking da percepção dos empresários sobre a disponibilidade de mão de obra qualificada, aliada a uma imposta (na medida em que pautou a matéria por medida provisória) e duvidosa reforma do ensino médio, que entre outras críticas, estão a ausência de previsão para estruturação de toda a rede de ensino e da capacitação e exigência de eficiência dos docentes, a modificação nas disciplinas obrigatórias, excluindo matérias como filosofia, sociologia e artes, (na contramão de reformas educacionais de vários países europeus), significa ir de encontro ao crescimento econômico-social que se almeja e que é alardeado pelo Poder Público.
Outro ponto questionável na proposta de reforma do ensino está na previsão do ensino técnico, que passará a ter peso semelhante às quatro áreas de conhecimento obrigatórias. Num plano mundial de globalização onde se estima que 50 milhões de trabalhadores de alta capacitação serão necessários nos próximos anos, a principal e maior crítica está no fomento, pelo Estado, da empregabilidade precoce e na elitização do ensino superior na medida em que jovens que precisam trabalhar optarão pelo ensino técnico, acabando por serem privilegiados, ao ensino superior, aqueles que, por razões financeiras, não necessitam trabalhar.
Nas palavras do saudoso Darcy Ribeiro, “a crise da educação no Brasil não é uma crise: é um projeto”, e assim, retornamos ao início: as heranças pela não-educação e pela educação de qualidade elitizada transcorreram os séculos e perdurando na organização social até os dias atuais, trazem as tristes realidades que presenciamos e vivenciamos nos dias de hoje.
Rodrigo Zoccal Rosa é especialista em Direito Penal e Processo Penal, bacharel em direito pela Faculdade Toledo de Ensino. Membro da Comissão Especializada de Promoção e Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente junto ao Colégio Nacional de Defensores Públicos – CONDEGE; Membro do Conselho Editorial da Escola Superior da Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso do Sul. Defensor Público do Estado de Mato Grosso do Sul (atualmente titular da 5ª Defensoria Pública da Infância e Juventude de Campo Grande).
Fonte: Justificando – CartaCapital