Julho das Pretas: a fome tem a cor amarela | Resenha de Quarto do Despejo APP-Sindicato

Julho das Pretas: a fome tem a cor amarela | Resenha de Quarto do Despejo

**Por Cláudia Gruber

Créditos: EBC

08 de novembro: Fui fazer as compras no japonês. Comprei um quilo e meio de feijão, 2 de arroz e meio de açúcar, um sabão. Mandei somar, 100. O açúcar aumentou. A palavra da moda, agora, é aumentou. Aumentou!

O ano era 1958. Mas, poderia ser ontem ou hoje este relato.

Quem fez esse desabafo foi uma mulher, negra, favelada, mãe solo de três filhos, moradora na rua A, barraco 9 da favela do Canindé, em São Paulo, que após ter sido descoberta pelo jornalista Audálio Dantas, teve uma reviravolta  em sua vida. 

Quarto de despejo-diário de uma favelada, lançado em 1960, traz o relato dos diários de Carolina Maria de Jesus, escritos entre 1955 a 1960 e retratam o cotidiano na favela. Em seus escritos, a autora apresenta-nos as pessoas que ali vivem, sobre a vida que ela leva com os filhos, seus medos, suas angústias e suas pequenas alegrias; além de reflexões sobre a sociedade e a política do país, assuntos que se entrelaçam no decorrer da obra.   

Carolina é lavadeira, catadora de papel e recicláveis, mas  o dinheiro que ganha mal dá pra sobreviver com os filhos. Ela vive também de doações e até mesmo de  restos de comida que cata na feira ou nas portas das fábricas e descartes de mercados.   Todo dia é uma batalha, pois ela  não sabe se terão o que comer. Essa fome, de cor amarela,  é um fantasma que a persegue constantemente. 

24 de julho: Como é horrível levantar de manhã e não ter nada para comer. Pensei até em suicidar. Eu suicidando-me é por deficiência de alimentação no estômago. E por infelicidade eu amanheci com fome. (p. 99)

A autora é o retrato de  milhares de mulheres negras que vivem nas comunidades por esse Brasil afora. Ela poderia passar despercebida na favela onde vive, porém algo a faz diferente das demais pessoas: Carolina escreve. Escrever, naquele contexto era um ato incomum, “metia medo” na vizinhança. para muitos, pior que ser vítima de feitiço, era ter seu nome num dos cadernos da catadora de papel.

A coloquialidade é a marca registrada da autora. Audálio Dantas, ao organizar os 20 cadernos de Carolina, poucas ou nenhuma alterações fez nos relatos. Procurou manter na íntegra a maioria dos escritos, inclusive fazendo constar erros de escrita (ortografia, acentuação, sintaxe, concordâncias), já que aquele material era o fruto de uma vida e como tal deveria ser preservado. Eliminaram-se algumas repetições e outros pequenos detalhes para transformar os diários em um livro. Carolina tinha estudado até a segunda série do primário, semi-analfabeta, foi aprendendo a ler e escrever através dos livros que achava no lixo, tornando-se uma autodidata.  

01 de junho: Eu nada tenho  que dizer da minha saudosa mãe. Ela era muito boa. Queria que eu estudasse para professora. Foi as contingências da vida que lhe impossibilitou concretizar seu sonho. Mas ela formou o meu caráter, ensinando-me a gostar dos humildes e dos fracos. (p.49) 

Era essa voz do povo da favela que precisava ser apresentada ao público leitor. O sucesso foi imediato, já que trazia um novo estilo literário e apresentava situações-limite até então ignoradas ou invisibilizadas para o público letrado, de modo geral. 

Os problemas apresentados por Carolina em seu cotidiano passaram a ser pauta de discussões mais aprofundadas pela sociedade paulistana da época, já que as favelas eram ainda redutos novos e muito restritos na cidade. Em São Paulo, as favelas começaram a se expandir a partir da década de 1940 e,  na época em que Carolina escreveu seus diários, havia em torno de 50 mil pessoas vivendo em favelas. Hoje, há 250 favelas (comunidades) na cidade e a maior delas, Heliópolis, tem em torno de 200 mil habitantes. Números esses que não pararam de crescer desde o surgimento da pandemia do covid.  Segundo dados do Dieese sobre as mulheres no mercado de trabalho, as negras foram as mais prejudicadas com o desemprego no país, representando 83% das demissões de 2019 até o  primeiro trimestre de 2021, ou seja,  quase um milhão de mulheres no período.

Carolina apontou problemas estruturais da favela que lhe tiravam o sono e até hoje o poder público não conseguiu resolver: saneamento básico, falta de água encanada,  ausência de coleta de lixo, dentre outros.

10 de julho: Aqui nesta favela a gente vê coisa de arrepiar os cabelos. A favela é uma cidade esquisita e o prefeito daqui é o Diabo. (p.91)

Quarto de despejo é  uma leitura dura, que incomoda o leitor, mas que se faz  necessária. Faz com que o mesmo se angustie diante das necessidades básicas de Carolina e dos filhos. Ao lermos os textos, mergulhamos no universo da favela e, por diversos momentos, parece que estamos dividindo o barraco com essa família.  Suas angústias tornam-se nossas angústias, suas reflexões, as nossas. 

06 de julho: Com as agruras da vida somos uns infelizes perambulando aqui neste mundo. Sentindo frio interior e exterior. (p. 179)

O primeiro livro de Carolina rendeu-lhe um bom dinheiro para realizar seu sonho: morar numa casa de alvenaria. Foram mais de 100 mil livros vendidos no primeiro ano. Ela conta essa outra história em Casa de alvenaria: Diário de uma ex-favelada, escrito em 1961. Mas, a escritora traduzida para mais de 11 idiomas e sucesso literário de sua época, viu-se enredada por pessoas inescrupulosas e quase voltou à miséria de onde saiu. Seus outros livros não tiveram o mesmo apelo comercial e ela se viu esquecida. Acabou indo morar em um sítio na zona rural de  São Paulo: Parelheiros, onde morreu com 62 anos. (1914-1977)

Atualmente, Carolina volta à cena literária. Quarto de despejo ganhou uma edição comemorativa em alusão aos sessenta anos de publicação e há também uma vasta bibliografia sobre a autora,sendo este livro uma das dez leituras obrigatórias para o vestibular UFPR de 2022, dada a atemporalidade do teor de sua obra.  A autora é considerada como uma das principais escritoras negras brasileiras e referência para a discussão sobre o combate ao racismo em nosso país já que, conforme dados do IBGE,  somos uma população composta por 52% de negros e negras, que sofrem cotidianamente discriminação racial. 

Há também uma belíssima biografia dela escrita pelo professor e historiador Joel Rufino dos Santos,ganhador duas vezes do Prêmio Jabuti de Literatura e uma autoridade em cultura afro no Brasil: Carolina Maria de Jesus – uma escritora improvável,  lançado em 2009.  Mas, aqui, já é outra história. 

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 10ª ed. São Paulo: Ática, 2014.

Obras da autora: 

  • Quarto de Despejo (1960)
  • Casa de Alvenaria (1961)
  • Pedaços de Fome (1963)
  • Provérbios (1963)
  • Diário de Bitita (1977)
  • Um Brasil para Brasileiros (1982)
  • Meu Estranho Diário (1996)
  • Antologia Pessoal (1996)
  • Onde Estaes Felicidade (2014)
  • Meu Sonho é Escrever:  contos inéditos e outros escritos (2018)

*Cláudia Gruber é professora da rede estadual e Secretária Executiva de Comunicação da APP-Sindicato.

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