Marx - anatomia das crises

Marx – anatomia das crises


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Lincoln Secco *

O poeta Ferdinand Freiligrath (1810 – 1876) encontrou ao acaso vários volumes de Hegel num sebo. Curiosamente, pertenceram a um desafeto de Marx: o anarquista Mikhail Bakunin.

Freiligrath enviou as obras a Marx como presente. O velho mouro, como era chamado em casa, escreveu a Engels informando que tinha lido de novo toda a Ciência da Lógica, obra que ele não mais possuía. Não fosse isso, talvez os Grundrisse (os esboços sobre a crítica da economia política) não apresentassem uma redação tão próxima da linguagem hegeliana.

No entanto, mais que a linguagem, a dialética estava entranhada na crítica que Marx tecia ao capitalismo. O ser o e o vir-a-ser podiam coexistir e apanhados num mesmo movimento. Marx podia vislumbrar no progresso típico do século 19 as marcas do seu contrário, a crise que lhe destruía periodicamente.

Marx estava só. Salvo alguns autores que condenavam moralmente o capitalismo, como Hodgskin ou Engels, os estudiosos da economia procuravam antes o conceito de equilíbrio do que o seu oposto. Queriam aquilo que harmonizaria a produção capitalista: por exemplo, J. B. Say, para quem demanda e oferta sempre se equilibrariam e não haveria superprodução nem crises.

Quando a Primavera dos povos de 1848 chegava ao outono dos seus usurpadores, Marx previu que “uma nova revolução só é possível como conseqüência de uma nova crise” e ainda acrescentou que tanto uma como outra eram quase inevitáveis.

De volta às bibliotecas – Mas a derrota levou todos os revolucionários às bibliotecas.  O leitor se recordaria de Lênin na Biblioteca de Genebra ou no Museu Britânico. Pois foi ali que, antes dele, Karl Marx leu os famosos livros azuis do Parlamento inglês e escreveu fichamentos de livros de economia política.

Marx acomodava-se na nova sala de leitura havia pouco criada pelo diretor, um liberal italiano naturalizado inglês, Antonio Panizzi (1797 -1879). Em alguma medida foi com o auxílio desse bibliotecário que Marx escreveu O Capital.

Com aquela pletora de dados estatísticos e livros de história econômica, ele publicou dezenas de artigos sobre as crises.

Marx via as revoluções e as crises como resultantes da contradição entre o progresso enorme das forças materiais de produção e o invólucro que as continha: a propriedade privada dos meios de produção. Pois uma produção cada vez mais social não combinava com os limites da apropriação privada de lucros.

Todavia, a maturidade não só do modo de produção do capital como do próprio Marx o conduziu às intrincadas subestruturas das crises. De simples manifestações fenomênicas de uma contradição geral do sistema, elas se deixariam desvendar como resultado da dinâmica interna do movimento de produção e reprodução do capital.

Assim, a primeira crise, se assim pudéssemos imaginá-la, já estaria potencializada na primeira troca que dois seres humanos fizeram. Na circulação simples de mercadorias, a compra e venda perfaz uma unidade interna, pois, se um vende, outro compra.

Entretanto, a circulação de mercadorias rompe paulatina e historicamente as amarras da troca natural e abrange espaços econômicos maiores, suscitando tempos de venda das mercadorias imprevisíveis para cada produtor. Assim, se um vende, nem sempre outro compra!

Ora, o leitor, que já viu o escambo em cidades pequenas do interior saberá o quanto ele difere da circulação das mercadorias em espaços maiores.

É por isso que a unidade interna original da “compra e venda” se rompe. Não são apenas dois negociantes se olhando diretamente, mas sim milhões de pessoas se dirigindo a uma entidade jurídica impessoal que é o mercado.

Em primeiro lugar, esse mercado pode ser um espaço localizado, como eram as feiras medievais. Depois, a troca só pode existir mediante antíteses externas, porque, se a identidade imediata entre compra e vende é eliminada, ela precisa ser mediada por uma forma de aparência, que é o dinheiro.

Mas não é assim que o “burguês prático” vê as coisas. Afinal, quando um mercador em Trebisonda, um operador em Wall Street ou o quitandeiro grego perdem seus investimentos, eles não atribuem sua má sorte senão a erros pessoais, a Deus ou ao mercado (que para os economistas de hoje é a mesma coisa).

Nos Grundrisse, aqueles rascunhos que os livros de Bakunin deixaram tão hegelianos, Marx anotou: “O valor de troca cindido das forças das próprias mercadorias e ele mesmo existente junto delas é: dinheiro”.

Circuito interessante – Marx achava que os economistas não ultrapassavam a “ideologia do burguês prático”, que só observava a mera constatação dos “vaivens do ciclo periódico” industrial. Ele pretendia mais e ambicionava abarcar o movimento real.

Ora, tal movimento não era outro senão o circuito incessante, automático e sem sujeito do próprio capital. Pois, embora Marx não visse com bons olhos os empresários, ele se importava pouco com eles em sua análise. O capital, para ele, não se reduzia a sua personificação na figura do capitão de indústria britânico.

E, nisso, Marx estava alem de seu tempo. Ele percebeu que o capital é uma relação social de extração da mais valia produzida por trabalhadores produtivos. E, como toda relação, ela esconde seu antagonismo básico (patrões e empregados) sob uma ficção jurídica, a do contrato de compra e venda entre pessoas iguais que trocam seus produtos no mercado.

Contudo, aquele movimento de reprodução do capital tinha entraves, e os mais importantes eram internos – e não externos. E também nisso Marx foi além de sua época. Como contradição em processo, o capital era impelido por uma força irresistível a ampliar as bases de sua própria dissolução.

Nas palavras de Marx, estamos diante de um regime de acumulação em que a “riqueza efetiva se manifesta (…) na tremenda desproporção entre o tempo de trabalho empregado e seu produto”, em que o trabalho vivo já não comparece tanto na produção; em que o trabalhador se reduz a mero “supervisor e regulador” da máquina.

Assim, o “próprio capital é a contradição em processo, pelo fato de que procura reduzir o tempo de trabalho a um mínimo, ao mesmo tempo em que, por outro lado, põe o trabalho como a única medida e fonte da riqueza”.

Essa constatação fundiu a cabeça dos marxistas, pois criava uma aparente oposição entre uma queda (untergang) implacável do capital e a necessidade de uma revolução social. Mas também provocou os capitalistas, quando se viam diante de prateleiras cheias e consumidores sem dinheiro.

Hoje, com uma crise econômica mundial que vem se prolongando desde 2008, o Mouro recobrou atualidade. Logo ele que passou a vida escrevendo tanto sobre aquilo que nunca teve: o capital.

Assim, tornou-se a bíblia de homens de negócios de Wall Street. Mas por pouco tempo. È que a teoria marxista das crises não oferece solução para o modo de produção capitalista. Ao contrário. Ela prediz a possibilidade do seu fim.

 

* Lincoln Secco é professor de História contemporânea na USP e autor de “Gramsci e a Revolução” (Ed. Alameda), entre outros.

 Texto extraído da Revista CULT. Edição Especial. Nº 4 – Ano 15. Filosofia contra o sistema. Marx – Adorno – Deleuze – Foucault – Hannah Arendt – Bourdieu – Sartre – Habermas e Zygmunt Bauman. Circulou em janeiro de 2012. www.revistacult.com.br

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