As três guerras de Laysa

As três guerras de Laysa


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Ela é a primeira e única diretora trans escolhida democraticamente para ocupar o cargo, em uma escola pública brasileira. Depois da primeira gestão, em 2009, foi reeleita em 2011 com votação absoluta não só dos alunos, como também dos pais. Como se não bastasse, a historiadora Laysa Carolina Machado, 42 anos, ainda desponta uma carreira artística da qual até o cineasta espanhol Pedro Almodóvar já ouviu falar. Em paralelo à educação, ela participa de filmes no circuito alternativo.

Laysa – uma mulher alta, articulada e exuberante – comemora todos esses feitos, de salto alto, abençoada por sua “santa protetora”, a pintora mexicana Frida Kahlo, de quem é fã inconteste. Mas o que faz mais diferença em sua vida é integrar os míseros 5% da população trans que conseguiu permanecer na escola e concluir seus estudos. O dado – quase informal – é consenso nas associações de gênero em atividade no Brasil.

É bom vê-la falar das guerras que guerreou. Primeiro Laysa enfrentou o sistema de ensino na posição de estudante. Hoje, repete a dose na perspectiva de educadora. Para vencer o sistema, contou com certa ingenuidade, remédio para seu sofrimento. Para sobreviver como diretora de escola, conta com a competência, reconhecida nos votos que recebeu para permanecer na dianteira do Colégio Estadual Chico Mendes, em São José dos Pinhais, Região Metropolitana de Curitiba.

Raízes índias e negras – Laysa Carolina Machado nasceu em Entre Rios, a 255 quilômetros de Curitiba, zona de imigração alemã próxima à tradicional cidade paranaense de Guarapuava. Mas não pertence nem ao Paraná quatrocentão nem ao Paraná da imigração. Suas raízes são índias e quilombolas, como denunciam seus olhos puxados e a pele morena.

Sua família circulava nas reservas caingangues da região. Teve infância e adolescência pobre. Calcula que começou a ajudar no sustento da casa aos 6 anos de idade. “Primeiro vinha a luta pela sobrevivência, depois a parte social”, conta. Foi a luta pelo pão de cada dia que fez com que Laysa passasse boa parte da sua juventude sublimando a transexualidade. Precisava escondê-la dos seus, e da escola, numa jornada dupla.

Nos tempos de estudante, lembra, teve que lidar com o bullying social, por ser pobre e indígena. Na pré-adolescência, quando o jeito feminino ficou mais evidente, sentiu na pele outro tipo de preconceito. Mas tinha um trunfo. Por conta do trabalhado braçal na construção civil acompanhando o pai, ela era grande e forte, impunha respeito e até medo nos colegas. O bullying ainda existia, mas nenhum aluno ousou ir mais longe do que olhares e risadinhas nos corredores. Laysa passou pela escola assim: driblando as agressões, apegada aos estudos, à fé em Deus, nutrindo o sonho de não se sentir tão vulnerável.

“A sociedade me dizia: desde que obedeça as regras eu vou te dar bônus para você continuar assim. Não se vista de mulher que eu vou deixá-la estudar. Não use roupas femininas que vou deixar você ser professor em uma escola particular. Quando eu vi estava numa locução de rádio, viajando para Europa como professor de inglês, dando aulas de teatro. Mas aquilo não me fazia integralmente feliz”, relata.
Basta – A história de Laysa se mistura com a de poucas outras pessoas trans que concluíram os estudos. Quase uma chantagem da sociedade, a preservação da imagem masculina lhe garantiu o direito de prosseguir nos bancos escolares. “Tenho absoluta certeza que se eu tivesse me vestido como mulher e assumido a transexualidade na escola, eu não teria sobrevivido.”

Foi durante a graduação que toda a cautela caiu por terra. Apaixonou-se por um colega. Entendeu o sentimento como um sinal de que a “porção” mulher nunca a abandonaria. Aos 25 anos iniciou a hormonioterapia, que nunca havia tido a oportunidade de fazer. Vendeu todos os bens adquiridos como professor e realizou a cirurgia à custa total de R$ 18 mil. Em julho de 2004, nascia Laysa Carolina Machado.

Mesmo recém-operada, assumiu um concurso público em uma escola em São José dos Pinhais. Para superar o constrangimento e o preconceito, inventava para os colegas que sofria de hermafroditismo. Quando algum aluno questionava, não sem ironia, porque ela tinha barba, Laysa não se abatia. Exigia respeito. Aos poucos, conta, adquiriu autoconfiança para estabelecer de vez sua identidade trans.

Foi no Colégio Estadual Chico Mendes, em São José dos Pinhais, que Laysa assumiu completamente a identidade de gênero. Logo que foi eleita diretora para o primeiro mandato, fez uma aparição no Agora é Tarde, na Rede Bandeirantes. “Depois que eu fui ao programa todos tiveram a certeza. Uma mãe evangélica me procurou e me deu parabéns pela garra. Isso me emocionou muito. A Laysa superou a transexual Laysa. Sou a Laysa e ponto. Eles conheceram primeiro a pessoa e depois o termo transexual.”
Leões por segundo – A diretora do “Chico Mendes” acredita que o fato do colégio estar localizado na região metropolitana da capital paranaense não influenciou na melhor aceitação da comunidade. “Acho que seria eleita em qualquer lugar do Brasil em que lecionasse. Esse é meu trabalho. Costumo dizer que se um hétero tem de matar um leão por dia, nós temos que matar um leão por segundo. Faço de tudo pelo meu trabalho.”

Laysa admite que o que mais machuca é ser subestimada. Há professores que desconfiam da sua capacidade de dirigir uma escola. “Alguns colegas usam outros termos para não revelar diretamente a identidade de gênero como o motivo do desagrado. Dizem que eu sou uma pessoa ruim ou uma pessoa má…”
É nas 1,6 mil crianças e adolescentes da escola que a diretora deposita sua esperança. Calcula que 99% dos alunos não demonstram nenhum preconceito ou aversão a sua presença. “A escola como instituição é mais um órgão excludente. Escola como ferramenta de educação, no sentindo utópico, é um caminho aonde queremos chegar. Foi o estudo e não a escola, foi a educação e não a instituição que abriram todos os caminhos para o que tenho hoje”, completa.

:: Assista aqui o monólogo “Morada Transitória” de Laysa Machado

:: Ouça aqui o podcast sobre a história de Laysa

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