Propositalmente inicio este texto citando os versos de um dos grandes poetas vivos da língua portuguesa, Afonso Romano de Santana. Ao refletir sobre os 500 anos da chegada dos portugueses ao Brasil, Santana apresenta chagas abertas da construção da nossa identidade nacional. Almejamos um futuro e esquecemos o passado e o presente. “Há 500 anos somos raposas verdes colhendo uvas com os olhos, semeamos promessa e vento com tempestades na boca”.
Os versos de Santana levam-nos a refletir sobre a necessidade de o Brasil encarar dilemas estruturais da sua realidade. Entre estes dilemas, destaco a questão racial, que historicamente tem sido negada ou folclorizada. A instituição do feriado de 20 de novembro, em minha opinião, contribui para que a questão racial brasileira seja colocada em pauta. Questão central para construirmos um país mais verdadeiro, em que a sua síntese dialeticamente represente o conjunto da sociedade brasileira. Assim, me proponho neste artigo a estabelecer algumas reflexões sobre a importância do feriado de 20 de novembro, dia da consciência negra – rumo a uma consciência do Brasil.
O feriado de 20 de novembro – data em que se lembra a morte do líder do Quilombo de Palmares (Zumbi faleceu em 20 de novembro de 1695) – foi instituído, segundo dados recém divulgados pela SEPPIR (Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial), em oito estados brasileiros: Alagoas, Amapá, Ceará, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Piauí, Rio de janeiro e Rio Grande do Sul; e em 757 municípios do país. Em Londrina, tramita na Câmara Municipal um projeto de lei similar de autoria do vereador Tito Valle. Na Assembleia Legislativa do Paraná a instituição do feriado estadual depende da aprovação do Projeto de Lei de autoria do deputado Lemos.
Alguns setores da sociedade brasileira têm apresentado críticas em relação ao feriado de 20 de novembro. Como justificativas alegam preocupações com o fechamento do comércio, a paralisação de produção, ou até mesmo, com a falsa ideia de irrelevância da data para o conjunto da sociedade. Em que pese a boa fé de parte dos defensores destas alegações, estas refletem o drama do racismo brasileiro. Estas justificativas contrárias ao feriado de 20 de novembro trazem consigo ,inconsciente ou conscientemente, o medo e o pudor do país ver sua própria imagem refletida no espelho, sem mitos ou falsas metáforas.
O reconhecimento da questão racial no país não é possível sem dor, sem responsabilização. Esquecê-la é o caminho mais fácil. Aliás, foi este sentimento que fez com que em dezembro de 1989, Rui Barbosa, através de um Decreto determinasse a queima de todos os documentos referentes à escravidão. Medida colocada em prática com a publicação em 13 de maio de 1891, da Circular nº 29, três anos após a abolição formal. A queima dos documentos liberta a consciência nacional da culpa pela instituição de um dos sistemas de dominação e exploração mais desumano e cruel da história.
Identidade nacional – Ao assumir a questão racial, a sociedade brasileira terá que assumir suas culpas e reconhecer um Brasil diferente, um Brasil de todos. Há muito tempo a elite brasileira tentou omitir o quadro de exclusão social, econômica e política construído para o negro brasileiro. Quadro ainda oriundo do processo histórico da escravização de africanos no país. Para justificar a escravização de negros, a elite econômica da época construiu um conjunto de ideias e interpretações (ideologia de dominação) com o objetivo de inferiorização do africano.
O negro foi coisificado, “desalmado”. Assim como o animal “que também não tem alma” poderia ser subjugado. Além disto, propositalmente fez com que todas as contribuições das civilizações africanas à humanidade e a resistência do negro à escravização fosse criminosamente apagada. Uma borracha passada na história e na vida nacional. A elite escravocrata conseguiu o objetivo. Constitui-se assim a figura do africano como um povo primitivo, sem cultura ou saberes. Apagaram da história, por exemplo, que as pirâmides foram construídas por africanos. Que a grande civilização egípcia é uma civilização africana. Que as tecnologias, os conhecimentos de povos africanos foram fundamentais para o desenvolvimento dos ciclos econômicos do Brasil colônia. Aliás, havia o cultivo da cana de açúcar, do algodão e de café nos países europeus? E a tecnologia dos minérios, ferro, ouro. Hoje sabemos que os primeiros grandes navegadores não foram os portugueses e sim povos africanos. Você leitor, sabia que um dos maiores escritores da literatura mundial, Machado de Assis, era negro?
O processo proposital de inferiorização do negro não parou por aí. Toda resistência dos negros ao processo de escravização foi omitido da história. Pouco sabemos dos quilombos. Até pouco tempo imaginávamos quilombo como uma experiência apenas do nordeste brasileiro. No entanto, só aqui no Paraná já foram identificados pelo governo do Estado mais de 80 comunidades remanescentes de quilombos. A resistência negra à escravização se deu de diversas formas: os quilombos, as irmandades religiosas, as associações de trabalhadores, as rebeliões nas fazendas, entre outras. Toda esta história foi deliberadamente escondida. Em seu lugar, aprendemos que os negros eram mais dóceis que os indígenas, que a abolição se deu graças à benevolência da Princesa Isabel, que as grandes contribuições africanas ao país foram no campo da capoeira (embora considerada como crime na legislação nacional por décadas), da culinária, da dança, numa tentativa de folclorização do negro. Estas construções ideológicas deixaram marcas profundas na estrutura e na consciência nacional do país.
Todo este processo de dominação propiciou um quadro de exclusão do negro. Com o fim da escravização, este é jogado à própria sorte. Com o êxito do mito construído da inferioridade do negro, para a elite um projeto de país desenvolvido só seria possível com o embranquecimento da população. Setores dominantes da elite nacional defendiam a necessidade da migração de europeus para o progresso do país. Houve financiamento público para a vinda de europeus para o país. Houve doação de terras da região sul do país. Não questiono este fato. Questiono a falta de políticas públicas que tivessem todos os segmentos da população como destinatários.
“O Brazil não conhece o Brasil” – Cito aqui o verso da bela música interpretada por Elis Regina Querelas do Brasil. O Brasil construiu uma identidade falsa do negro e de si mesmo. E a identidade de um povo ou de uma nação é condição fundamental para a sua emancipação. Este é o sentido do feriado do 20 de novembro. É o próprio povo brasileiro reconstruindo a sua identidade e sua história e lembrando seus heróis. Prefiro muito mais lembrar Zumbi que liderou o Quilombo de Palmares do que ver em ruas da minha cidade nomes de dizimadores de negros e indígenas como Jorge Velho e Borba Gato. Palmares sobreviveu por quase cem anos e, no seu auge ( século 17) chegou a ter mais de 20 mil habitantes. População maior do que a de muitos municípios brasileiros.
Termino este artigo logo após ter visitado, na Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro, a exposição sobre João Cândido mais convencido ainda da importância da instituição do feriado do 20 de novembro em nossa cidade e em nosso Estado. Nosso herói João – o Almirante negro – ao liderar a Revolta da Chibata possivelmente tenha sido o protagonista de um dos mais ousados enfrentamento contra a opressão no país. Valeu João! Valeu Zumbi! Heróis e cidadãos brasileiros.
(*) Luiz Carlos Paixão da Rocha – Professor da rede estadual, mestre em Educação pela UFPR. Atualmente é diretor Estadual de Imprensa da APP-Sindicato
Feriado de 20 de novembro: construindo um Brasil mais brasileiro

null